Aluízio (o primeiro à esquerda), com ciganos da comunidade de Tangará da Serra (MT), seus tios-avós, durante pesquisa de campo (foto: Karen Ferreira)
Por Icict/Agência
de Notícias Fiocruz
Os primeiros ciganos chegaram ao Brasil ainda no
século 16. Apesar de os dados oficiais sobre eles serem muito escassos,
estima-se que haja, hoje, entre 500 mil e um milhão de ciganos no país, de
diferentes comunidades e etnias. Como se dão os processos de comunicação entre
as políticas públicas de saúde e esses povos?
O jornalista e antropólogo Aluízio de Azevedo Silva
Júnior, ele mesmo um cigano da etnia kalon, elencou essa e outras perguntas
como ponto de partida para sua pesquisa de doutorado, defendida em 2018. Pois o
trabalho A Produção Social dos Sentidos nos Processos Interculturais de
Comunicação e Saúde: a apropriação das Políticas Públicas de Saúde para ciganos
no Brasil e em Portugal acaba de conquistar a edição 2019 do Prêmio Compós de
Teses e Dissertações Eduardo Peñuela, um dos reconhecimentos mais importantes
na área da Comunicação.
Aluízio cursou seu doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), do Instituto de
Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). Foi
orientado por Inesita Soares de Araújo, do PPGICS, e coorientado por Maria
Natália Pereira Ramos, da Universidade Aberta (Uab – Lisboa), de Portugal.
Para sustentar sua tese, entrevistou 20 ciganos do
Brasil e 20 de Portugal. Ouviu inúmeros relatos de racismo institucional na
saúde, como casos de esterilizações forçadas de mulheres ciganas e também maus
tratos por parte de alguns profissionais, em Portugal.
No Brasil, identificou conflitos entre as equipes
de saúde e os povos ciganos, que enxergam a saúde de forma diferente dos
profissionais da área. Situações que revelam o racismo e os estereótipos que
ainda afetam o cotidiano dos povos ciganos, reforçando situações de exclusão e
de desigualdade social.
“Minha pesquisa se insere em campos e temas
bastante sensíveis para a saúde: o da comunicação e o das políticas de equidade
do Sistema Único de Saúde (SUS). Sobretudo aquelas voltadas para populações em
situação de exclusão ou desigualdade social, incluindo aí as minorias étnicas
e, dentro delas, as comunidades ciganas”, explica Aluízio.
“Esse público é definido no Plano Nacional de Saúde
como prioritário no atendimento do SUS, mas as políticas afirmativas em saúde
não têm conseguido sair do papel. E as comunidades nessa situação sofrem com
racismo institucional ou cuidados inadequados em saúde nos serviços públicos ou
privados, por desconhecerem e não respeitarem as suas especificidades e
contextos culturais, sociais, políticos e econômicos. Denunciamos situações de
negligenciamento e invisibilidade dessas populações na saúde”.
Inovações
metodológicas
Em sua pesquisa, o jornalista encontrou inúmeros
desafios. Um deles foi conseguir descortinar o universo cigano de forma
inovadora e sem preconceitos. “Esse tema ainda é pouco estudado. Ou, quando
ganha foco em estudos, em geral acaba enquadrado no molde científico
hegemônico, alimentando estereótipos e reforçando o racismo em todas as suas
faces, inclusive o epistêmico”, esclarece.
Para vencer esse desafio, aplicou à pesquisa de
campo o que chama de “metodologia fílmica semiológica, intercultural e decolonial”,
que incluiu, entre outras ações, um registro fílmico de várias comunidades
ciganas brasileiras e portuguesas. Esses registros deram origem a um vasto
material, que Aluízio pretende editar, para compor um longa-metragem sobre as
comunidades ciganas da etnia kalon. Para isso, porém, precisa conquistar
financiamento.
Inesita, orientadora do pesquisador durante o
doutorado, identifica muitos méritos no trabalho. “Um deles é como evidencia a
possibilidade de fazer uma pesquisa com rigor teórico e metodológico,
contribuindo para o avanço da ciência no campo da ‘comunicação e saúde’, ao
mesmo tempo em que é uma pesquisa comprometida com setores da população que
sempre estiveram à margem da sociedade. Não por quererem, mas porque foram
marginalizados, porque foram considerados desnecessários, supérfluos e mesmo
indesejáveis”.
A pesquisadora também destaca o fato de Aluízio
trazer a Filosofia Kalon como um dos quatro eixos de sustentação teórica da
tese, ao lado dos Estudos Culturais, das Epistemologias do Sul e da Semiologia
Social dos Discursos.
“Por fim, realçaria que o pesquisador, um cigano
kalon, que por méritos próprios tornou-se jornalista, depois antropólogo e
finalmente conquistou seu título de doutor entre nós, no PPGICS, fez dos
participantes de sua pesquisa coautores desse processo de produção de
conhecimento sobre uma realidade tão negligenciada quanto negligenciado é o
povo cigano. E isso é muito precioso”.
Exclusão
social
Para Aluízio, outro desafio marcante teve a ver com
a barreira de um estereótipo: a ideia, equivocada, de que pessoas ciganas não
gostam de estudar. “É muito raro um cigano chegar ao nível superior, o que dirá
concluir uma tese de doutorado”, lamenta. “Também nos deparamos com uma
realidade dura e cruel de políticas anticiganas que foram desenvolvidas pelas
nações ocidentais ao longo dos séculos, inclusive no Brasil e em Portugal.
Coisas como degredo, expulsão, a proibição de falar
a língua cigana e de praticar os costumes, prisões, sequestros de bens e até
assassinatos. Ações que deixaram um rastro de exclusão social, onde hoje se
encontra uma imensa parcela das pessoas ciganas. E a nossa proposta foi
justamente romper com esses paradigmas excludentes para mostrar que as
comunidades ciganas também têm saberes e modos de vida que podem contribuir, de
alguma forma, para o diálogo acadêmico e político sobre as políticas de saúde”.
Além de atuar como jornalista no núcleo de Mato
Grosso do Ministério da Saúde, o autor tem se dedicado a atividades acadêmicas
para divulgar a tese. “Também tenho buscado modos para fazer com que o
conhecimento coletivo produzido na pesquisa chegue como devolutiva às
comunidades ciganas, para que ampliem os seus argumentos e fortaleçam seus
discursos.
Bem como aos gestores em políticas públicas de
saúde e de outras áreas de direitos humanos, para que possam subsidiar suas
tomadas de decisões em prol da saúde cigana, da justiça social e da igualdade
racial, que são questões garantidas constitucionalmente e em diversas leis”.
Dez anos do
PPGICS
A forma como encara a ideia de “equidade”, afinal,
é o grande trunfo da tese de Aluízio, destaca Inesita: “A equidade é um desafio
ao mesmo tempo simples e gigantesco. O desafio do reconhecimento de que os
grupos sociais têm suas especificidades culturais e que elas merecem respeito.
O desafio da decisão (e coragem) política de
conferir mais atenção aos setores da população historicamente negligenciados,
entendendo que o negligenciamento na saúde é parte inseparável da situação em
que esses grupos se encontram. O desafio de perceber que a comunicação é parte
inseparável desse negligenciamento, e que nenhuma política para minorias poderá
ser implantada plenamente se a comunicação que a constitui e que a viabiliza
não respeitar também o princípio da equidade”.
O reconhecimento do Prêmio Compós à tese de Aluízio
acabou coincidindo com uma data importante para o PPGICS: seu aniversário de 10
anos. O programa de pós-graduação, que oferece mestrado acadêmico e doutorado
em Informação e Comunicação em Saúde, está avaliado com nota 5 pela Capes, e já
formou cerca de 40 doutores e 90 mestres.
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