O Bairro das Pedreiras, em Beja, Portugal, é um dos locais mais excluídos de Portugal e na Europa: não há água nem eletricidade para cerca de 300 pessoas ciganas
O heterogêneo
e rico universo cigano converge no mundo ocidental como o seu outro, sendo
refratado no senso comum ou no imaginário social como uma unidade genérica que
oculta uma complexidade enorme de diferentes culturas, identidades, línguas e
saberes. Não será possível reconstruir uma história unificada e homogênea das
comunidades ciganas, em nível mundial, em Portugal ou no Brasil.
Até porque os
ciganos não possuem uma história escrita. É no marco da oralidade, entre mitos,
ritos e no aprendizado social e cultural que registram tradições,
conhecimentos, valores, saberes e bens culturais, transmitindo-os de geração em
geração há milênios. Como sabemos o tempo da história oral, mitológico,
funciona sob a lógica cíclica, diferentemente do tempo cronológico da história
escrita, que é linear.
As pessoas
ciganas não se interessam pela história escrita ou demonstram "interesse
em saber onde viveram seus antepassados" (Moonen, 2011, p. 11). Andrade
Jr. (2013 p. 98) realça que a falta de uma história contada pelos próprios,
"dificultou e continua causando problemas na análise sobre sua história e
suas práticas sociais". Durante séculos os registros foram feitos por
não-ciganos, expressos em crônicas, legislações, registros policiais, textos
jornalísticos e relatos de religiosos.
Na maioria das vezes estereotipados, proliferaram
lendas e folclorização, com representações literárias e midiáticas que mantiveram
e reforçaram preconceitos, discriminação, desigualdades e exclusões. "A
imprensa, as leis e em boa parte as artes têm contribuído para o processo de
desqualificação e por conseguinte, a exclusão de grupos ciganos espalhados pelo
mundo, o que constatamos também no Brasil" (Miranda, 2011, p. 110).
A relação entre ciganos e não-ciganos
no ocidente sempre foi de embates e conflitos, vivendo no "fio da
navalha" (Andrade Jr, 2008): na pior das hipóteses entre a exclusão e o
extermínio e, na melhor, numa integração subordinada, marcada por inclusão
desigual, padronização cultural e apagamento de saberes (Santos, 2002). Tal
ocultamento, tem sido corroborado pela ciência moderna. Argumenta Moonen
(2011), que somente a partir do século XVIII foram publicados os primeiros
livros sobre as comunidades ciganas. De fato, a ciganologia europeia e brasileira
foram anticiganas.
Os dados históricos até hoje disponíveis sobre ciganos
no Brasil são comprovadamente poucos, porque, até recentemente, os
historiadores brasileiros nunca deram a mínima importância para a História
Cigana. O pior, no entanto, é que, quando existem pesquisas históricas, se
trata de dados enviesados, distorcidos pela visão etnocêntrica (Moonen, 2011,
p. 125).
A historiografia ou a etnografia
cigana realizada pela ciência moderna - baseada numa visão eurocêntrica, não
consegue conceber formas diferentes de ver e viver sem excluí-las ou
canibalizá-las. Os pesquisadores que os estudaram na Europa ou no Brasil até meados
do século XX, contribuíram para reforçar e/ou construir estereótipos. Há um
vácuo nos estudos sobre o tema no Brasil, o que talvez explique a dificuldade
em reconstruir uma história cigana no país.
O primeiro livro publicado é de
1886: “Os Ciganos no Brasil e Cancioneiros dos Ciganos” de Mello Moraes.
Depois, foi publicada em 1936 a obra “Os ciganos do Brasil. Subsídios
históricos, ethnográficos e lingüísticos”, de José de Oliveira China (Moonen,
2011). Após este, o próximo trabalho aparece só em 1972, com a dissertação de
Maria Luiza sant’Ana, que realizou uma etnografia com uma comunidade Rom de
Campinas (Souza, 2013, p. 37).
Souza (2013, p. 34) pontua que
“ciganologia” nasceu estando vinculada ao orientalismo, ao modo como Edward
Said propõe. Os estudos ciganos nasceram na Inglaterra com a criação da “Gypsy Lore Society” (1880). Mas desde o
princípio, tornou-se um canal de
difusão, debate e legitimação de um conhecimento que produzia o cigano com o
outro, ao modo como o discurso europeu produzia o oriental como o outro. Não
por acaso, nesta época surge a teoria de que os ciganos, eram indianos, afinal,
só podiam ser párias, emigrados da Índia.
Rodrigo Teixeira (2008, p. 06 e 07)
enfatiza que a história desses grupos é feita "de exceções, impossibilidades,
incongruências e contra-sensos". As condições espaciais e temporais que
cada grupo, tende a individualizá-los em microuniversos. Baseados nas
autodenominações dos próprios ciganos, estudos acadêmicos têm afirmado existir
três grandes grupos: os Kalon, os Rom e os Sinti, com distintos subgrupos
(Moonen, 2011). Mas esses troncos, se manifestam de maneiras diferentes a
depender dos países onde estejam, com culturas e modos de ver o mundo
distintos, além de estarem em temporalidades diversas em suas relações de
integração/exclusão nas sociedades nacionais/locais.
Toda história dos ciganos é, na verdade, uma viagem
nas línguas, nas estéticas, nas políticas anti-vagabundos e anti-artistas, nas
religiões, nas concepções de mundo, com os quais vários grupos ciganos,
sucessiva e contraditoriamente, tiveram contato. Nisso a universalidade dos
ciganos se manifesta. Dito isto, ressalta-se que as diferenças e a diversidade
entre os ciganos não impedia que houvesse solidariedade (Teixeira, 2008, p.
12).
Deste modo, não será possível reconstruir
uma historiografia unificada dos povos ciganos, mas sim reconstruir como os
estados e nações ocidentais, incluído Brasil e Portugal, se comportaram ao
longo do tempo no tratamento com os grupos ciganos a partir da criação e aplicação
de políticas colonialistas para regular e controlar essas comunidades e que, de
uma forma geral, podem ser divididas em dois momentos:
1) Um longo período de aplicação de
políticas persecutórias e anticiganas expressas pelas mais diversas formas de
violência física como genocídios e extermínios, prisões, torturas, escravidão,
castigos corporais, a separação forçada de famílias com sequestros de crianças,
e formas de violências simbólicas, a exemplo das proibições de falar a língua
(linguicídio), praticar costumes como usar as roupas tradicionais e viver em
bando (identidadecídio), o apagamento de saberes (epistemicídios) ou a
padronização cultural via estereotipação e estigmatização, inferiorização,
dominação, racismo e desigualdades. Foram vítimas do colonialismo português
duplamente. Essas
políticas foram apoiadas pelas populações majoritárias, tanto que permanece no
imaginário brasileiro e português as imagens dos ciganos perigosos, que roubam,
que trapaceiam, mentem e enganam. Muitas continuam, ainda que disfarçadas de
outras formas, como o isolamento em guetos, vez por outra, exterminadoras
(Silva Júnior, 2018; Silva Júnior e Araujo, 2015).
2) E um segundo período, muito
recente, com a emergência dos direitos humanos pós II guerra mundial em que
estados ocidentais começaram a desenvolver políticas de integração. Um
movimento que se concretizou na Europa a partir de 1969, quando o conselho
europeu publicou a recomendação 563 reforçando aos Estados membros a
necessidade de reconhecer as comunidades ciganas como minorias étnicas e
considerando-as como um problema de desenvolvimento humano a ser revolvido. E,
mundialmente, a partir de 1978 quando a ONU formulou uma resolução exortando os
países a garantir-lhes os mesmos direitos de outros cidadãos não-ciganos; e
1979, quando reconheceu a União Internacional Romani como a ONG que representa
os ciganos junto ao órgão, tendo status consultivo (Silva Júnior, 2018; Silva Júnior e Araujo, 2015).
Em Portugal e Brasil, essas
recomendações só começaram a ser aplicadas com a implantação de políticas de
inclusão social, a partir da redemocratização de ambos os países. Mas isso já é
assunto para um outro texto.
Por Aluízio de Azevedo
Assessoria de Comunicação da AEEC-MT
Referências Bibliográficas
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SANTOS, B.S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na
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SILVA JÚNIOR, Aluízio de Azevedo. Produção Social
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SOUZA, M. A. Ciganos,
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TEIXEIRA, R. C. (2008). "História dos Ciganos no Brasil". Núcleo de Estudos
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