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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Feminismo cigano: Existimos e resistimos! – Entrevista a Maria Gil

Cigana, atriz e portuguesa Maria Gil, ativista do movimento "Mulheres e Ciganas Existem e Resistem!"

Por HELENACARLAG

Combinei encontrar-me com a Maria Gil nos jardins do Palácio de Cristal. Um dos locais mais bonitos do Porto, Portugal. Amplo e verde, permite-nos usufruir de todos os raios de sol a que nós, mulheres, temos direito! Afinal, estamos no Verão! E, vamos falar de feminismos, mais propriamente de feminismo cigano. A Maria Gil é mulher e cigana. “Não é mulher vírgula cigana”, explica, “é mulher e cigana, o e é muito importante porque acrescenta algo. Ao facto de eu ser mulher, acrescento o cigana, é uma soma e o resultado desta soma é o que eu sou e me orgulho muito de ser”. Para além disto, também é feminista desde os dez anos de idade e sente na pele a intersecção destas três fortes camadas: mulher e cigana e feminista. 

Helena Ferreira (HF) – Diz-me como te tornaste mulher e resistente no seio de uma comunidade que, por um lado, é vítima de violência constante ao longo dos séculos por parte do patriarcado “branco” heteronormativo e por outro, é vítima do seu próprio patriarcado dentro da sua comunidade.

Maria Gil (MG) – A minha primeira resistência começou aos dez anos de idade, quando comecei a questionar porque me tratavam de forma diferente em relação aos rapazes e em relação às meninas da comunidade dita “branca”. Por exemplo, nunca percebi porque é que não podia estudar até porque o meu pai que era cigano sempre me disse que eu teria que estudar mas, entretanto este quadro alterou-se com a sua morte. De repente, fico sem pai, com uma mãe extremamente fragilizada e conservadora, que uniu a sua dor à necessidade de defender a sua versão da tradição e que aos sete anos me veste de negro e me tira da escola. Aí tomei a consciência da gravidade da situação, porque estava a ser alvo de uma superprotecção mal direccionada. Quando regresso à escola, com oito anos, volto uma menina vestida de negro e sou alvo de bullying por parte das outras crianças. Perdi o direito à cor e perdi o chão. Estou a falar nisto porque é muito importante que todas as mães e pais percebam que tirar as crianças da escola, principalmente as meninas, é uma violência e que só as estão a encaminhar para situações de fragilidade social e a dependências de terceiros.

"O patriarcado cigano, como todas as comunidades ciganas de uma forma geral, encontra-se entrecruzado pelas conjunturas de marginalidade, subalternidade e exclusão social"

HF – Existe a ideia pré-concebida de que a comunidade cigana é extremamente machista… Mais que a nossa, a dos ditos “brancos”?

MG – Não. O patriarcado cigano, como todas as comunidades ciganas de uma forma geral, encontra-se entrecruzado pelas conjunturas de marginalidade, subalternidade e exclusão social. Neste sentido, reivindicar a masculinidade e responder às normas que lhes são impostas é de vital importância para a afirmação da própria identidade, estigmatizada e desconsiderada pela sociedade dos payos (pessoas que não são ciganas). Por isso, não os posso considerar mais machistas, mas sim homens que se movem pelas circunstâncias que o meio social lhes proporciona que, por vezes, são extremamente violentas. Transgredir as leis e as normas na nossa comunidade ganha uma visibilidade absoluta. Há sempre a tendência para apresentar a nossa população como um grupo homogéneo, como se o sexismo e a opressão patriarcal fossem prerrogativas de culturas exoticizadas como a nossa. Por exemplo, se ocorrer uma violação dentro da comunidade cigana, os ciganos passam a ser todos violadores e é uma notícia que tem grande impacto na comunicação social.

HF – Sim, dá a sensação que assistimos ao aumento da violência contra a população cigana na Europa, o que se comprova com as declarações racistas que temos presenciado nos últimos dias no nosso pequeno país. Como sentes isto?

MG – Acho que toda esta violência social geral que se tem vindo a desenvolver, tem como ponto de partida o patriarcado. Não se chegava a este ponto de violência racial se as sociedades não colocassem na sua organização as relações de alteridade, de superioridade de uns seres humanos sobre os outros. E todos estes acontecimentos tornam urgente a necessidade de um activismo sempre presente e de um feminismo cigano em estado de alerta. Por exemplo, devíamos estar já nesta fase, na primeira década do século XXI, a discutir a partilha de responsabilidades e a afirmação nos processos de integração e de negociação com a sociedade dita maioritária, isto é, termos voz de igual para igual e isso não acontece. Os payos, e as payas também, ainda pretendem falar por nós, dizer-nos o que está certo e o que está errado. A cultura dominante impõe-nos uma identidade e insere-nos numa gaveta e a questão é como constróis e desconstróis a tua própria identidade e resistes a ser colocada nessa gaveta. Por outro lado, e em simultâneo, tens as lutas dentro da tua própria comunidade, pela visibilidade das mulheres e igualdade de género, o que não é fácil porque o machismo é tão perverso que gera nas mulheres um sentimento de protecção e elas sentem-se umas patetas alegres (vítimas felizes), porque o homem toma conta delas. São estas patetas alegres que defendem a divisão entre as mulheres sérias e as outras. As sérias são as firmes, as castradoras, as grandes defensoras do patriarcado contra aquelas que assumem as suas identidades, que ousam e que são verdadeiras consigo mesmas e com a dupla sociedade que enfrentam(a dos payos e a cigana) e que fazem as suas opções. Tenho a certeza que se as patetas alegres tivessem noção que são oprimidas, mais mulheres ciganas seriam feministas e livres.

HF – Existem vários estereótipos instaurados no nosso imaginário social: todas as mulheres ciganas são feirantes (vendedoras ambulantes), não estudam, casam cedo e com ciganos, e são mães de famílias numerosas.

MG – Isso é tão ridículo como eu dizer que as mulheres payas portuguesas têm todas bigode e vestem todas de preto. Sempre existiram mulheres ciganas resistentes, embora não tenham sido apelidadas de feministas. A verdade é que não têm que ser apelidadas de feministas ou considerarem-se assim. Existem mulheres ciganas em todas as profissões e que estudam. Já existem muitas mulheres ciganas licenciadas e doutoradas e que não casam nem têm filhos. Ou seja, que fazem as suas escolhas e lutam por elas. Tenho, no entanto, que referir que o grande desafio é criticar as estruturas patriarcais internas e, ao mesmo tempo, tentar evitar reforçar os estereótipos negativos sobre a nossa comunidade, por exemplo, porque defendo que todas as meninas devem estudar, não posso permitir que isso seja visto pelos payos logo como: “Pois, eles não deixam as meninas estudar porque as casam muito cedo”, ou seja, evitar que as reivindicações de género se tornem um instrumento de alterização e de estigmatização de um grupo subalterno e racializado. Tenho ainda que falar aqui da interseccionalidade que mostra o cruzamento de diferentes opressões: de género, classe, “raça” e sexualidade, sofridas pelas mulheres ciganas. As formas de discriminação interagem umas com as outras, há que afirmar a consequente necessidade de uma luta plural contra o racismo, a opressão de classe e contra o machismo tanto interno, como externo às comunidades.

HF – Passava dias a falar contigo, mas temos que terminar por agora, claro, porque vamos voltar a conversar, com toda a certeza. E, para terminar, tenho que te perguntar: O que podemos nós, mulheres “brancas” feministas fazer para apoiar as mulheres ciganas?

MG – Deixar de lado o paternalismo e sobretudo valorizar a nossa voz, porque a temos, como vês. Não podem impor-nos a vossa cultura. Deixem-nos evoluir conscientemente, construir e desconstruir a nossa identidade, tornar-nos mulheres, como referiu a Simone de Beauvoir. Não nos salvem, não precisamos de ser salvas. Nós somos a semente das Mulheres e Ciganas que não foram queimadas e esterilizadas. Existimos e resistimos.

Disponível em: https://cientistasfeministas.wordpress.com/2017/08/05/feminismo-cigano-existimos-e-resistimos-entrevista-a-maria-gil/ 


Assista aqui a uma entrevista da TV Portuguesa à Maria Gil: https://www.youtube.com/watch?v=4N-E1qDDiHc


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Maria Divina Cabral: mestra da cultura cigana Calon e mato-grossense

Projeto que contempla a mestra foi aprovado no edital Conexão Mestres da Cultura da Lei Aldir Blanc

Com enorme satisfação, a Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT) comunica a aprovação do projeto “Diva e as Calins de Mato Grosso: ontem, hoje e amanhã” no edital Conexão Mestres da Cultura da Lei Aldir Blanc, que reconheceu a raizeira e membra desta associação, Maria Divina Cabral, como uma mestra da cultura mato-grossense.

O resultado foi publicado nesta terça-feira (08/12) na página eletrônica da Secretaria de Estado de Cultura, Esportes e Lazer de Mato Grosso (SECEL-MT). Também foram aprovados outros 74 mestres e a lista pode ser acessada no link: http://www.cultura.mt.gov.br/documents/362998/15771026/Resultado+Final+Mestres+da+Cultura/e127afee-9d52-0432-a8bc-76831f79f499.

Diva, como é mais conhecida, nasceu na cidade de Mineiros (GO) e viveu boa parte de sua vida nos lombos dos cavalos, trafegando pelas cidades dos Estados da região Centro-oeste, até que no início da década de 70 fixou residência com sua mãe, pai, irmãos e parte de sua comunidade no município de Rondonópolis (a 210 km de Cuiabá, no sul do Estado).

Atualmente, a Calin mora em uma modesta residência de apenas três cômodos, na Vila Poroxo e ajuda a todos que chega com rezas, benzeções, aconselhamentos e remédios naturais. A comunidade Calon de Rondonópolis é a maior comunidade cigana de MT, reunindo em torno de 150 pessoas.

Além de premiar a mestra Maria Divina Cabral com um prêmio no valor de R$ 20 mil, o projeto contempla ainda a realização de um encontro de mulheres ciganas em Rondonópolis, que servirá como dispositivo para a construção de uma websérie documental “Diva e as Calins” e a criação de uma exposição fotográfica virtual sobre as mulheres ciganas mato-grossenses de vários municípios.

Assista ao vídeo “Uma Família Cigana” e conheça mais sobre Diva e sua família: https://www.youtube.com/watch?v=29EiQeQa_nc

Maria Divina Cabral – mestra da cultura cigana Calon mato-grossense

A cigana da etnia Calon (também pode ser escrito como Kalon ou Calom), Maria Divina Cabral, 66 anos, é uma mestra da cultura cigana em todos os sentidos. Diva, como é mais conhecida, nasceu a 25 de setembro de 1954, em uma barraca num acampamento na cidade de Mineiros (Goiás). Filha de Lázaro Alves Pereira e Lourdes Rodrigues Pereira, casou-se dentro da tradição cigana, com o seu primo (filho da irmã do pai), Jair Alves Cabral, construindo e mantendo um profundo conhecimento da filosofia Calon e seu sistema de ação e organização sociocultural.

A Calin (modo como as mulheres ciganas se autodenominam) viveu boa parte de sua vida nos lombos dos cavalos, trafegando pelas cidades dos Estados da região Centro-oeste, até que no início da década de 70 fixou residência com sua mãe, pai, irmãos e parte de sua comunidade no município de Rondonópolis (a 210 km de Cuiabá, no sul do Estado). Mãe de duas filhas, Selma e Cleide, avó de quatro netas (Lorraine, Suani, Leidiane e Cristiane) e três bisnetas (Cristina, Paula e Isabela); atualmente é a principal e mais importante raizeira e benzedeira cigana no Estado, mantendo viva a medicicna tradicional na comunidade Calon mato-grossense.

Integrante fixa do conselho de anciãos da etnia Calon e membra fundadora da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), Diva é respeitada e ouvida por todos da comunidade, por sua experiência e sabedoria na condução e salvaguarda de diversos costumes, narrativas e saberes da filosofia kalon. A sua participação e influência na comunidade, que reúne em torno de 300 pessoas no Estado, não se limita a Rondonópolis, chegando a outras comunidades Calon de municípios como Tangará da Serra, Cuiabá, Sinop, Guiratinga, Pedra Preta, Campo Novo dos Parecis e Alto Araguaia.

Apesar de não ter sido alfabetizada e nunca ter frequentado uma sala de aula, Diva é versada na língua romanó-kaló, que no Brasil é também conhecida como chibe, sabe todas as simpatias, ervas apropriadas e rituais de cura infantis, aplicando-os em crianças ciganas e não-ciganas, produz remédios e unguentos naturais para mulheres e homens que tem problemas de fertilidade e os mais variados tipos de enfermidade, sendo conhecedora de uma variedade incrível de plantas medicinais do cerrado e da floresta amazônica.

Os saberes da medicina tradicional Calon foram aprendidos pela anciã Calin ainda na infância, quando acompanhava sua mãe, dona Lourdes, ou as suas avós, Maria e Jordelina, ao cerrado ou à floresta, para fazer a colheita das plantas, ervas e matérias primas necessários para a confecção dos remédios naturais.

A raizeira começou fazendo garrafadas para si mesma ainda muito jovem, depois para os parentes e logo estava atendendo também aos não-ciganos, que passaram a cada vez mais procurá-la. Há cerca de 10 anos, desde quando sua mãe, dona Lourdes, de 84 anos se aposentou das funções de raizeira por problemas de saúde, Diva assumiu as suas funções e entre os cuidados com a matriarca, que mora no mesmo lote, vem mantendo viva a chama da medicina cigana no Estado.

Atualmente com 65 anos, a Calin mora em uma modesta residência de apenas três cômodos, na Vila Poroxo e ajuda a todos que chega com rezas, benzeções, aconselhamentos e remédios naturais. Já auxiliou a milhares de pessoas em Mato Grosso e até mesmo de outros lugares do país, como Goiás e Minas Gerais. Sempre é chamada para reuniões de aconselhamento entre os seus familiares, mesmo os mais distantes. Também é consultada sobre questões referentes aos inúmeros aspectos culturais e identitários Calon, como as leis do casamento, do luto e do funeral, o que a torna, definitivamente, uma mestra da cultura popular cigana mato-grossense e brasileira.

Em 2011, Maria Divina participou do filme documental É Kalon – Olhares Ciganos (35’), que foi patrocinado pelo Fundo Estadual de Cultura de Mato Grosso. E em 2015, foi lançado o curta-metragem “Uma Família Cigana”, que conta a história de sua família, com foco nela e em sua mãe, D. Lourdes. Entre 2014 e 2018, Diva foi uma das principais interlocutoras da tese de doutorado “Produção Social dos Sentidos em Processos Interculturais de Comunicação & Saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal”, defendida na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, Rio de Janeiro) em agosto de 2018. O trabalho foi vencedor do prêmio Compós – Eduardo Peñuela de teses e dissertaçãoes 2019 como melhor tese de comunicação do país, concedido pela Compós – Associação Nacional de Cursos de pós-graduação em comunicação; e recebeu menção honrosa no prêmio Fiocruz de teses 2019.

Desde 2017, Diva é membro fundadora e uma das principais representantes da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), uma instituição sem fins lucrativos, que foi criada neste mesmo ano e é filiada à Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC), cuja sede é em Brasília. Também em 2017 Diva participou do longa-metragem etnodocumental, “Calon Lachon”, que está em fase de produção e registrou, além da comunidade mato-grossense, também uma comunidade em Brasília, diversas comunidades Calon de nove cidades portuguesas e a peregrinação de Santa Sara Kali, que ocorre todo ano no dia 24 de maio na cidade francesa de Saintes-Maries-De-La-Mer. A produção está em fase de edição e vai ser lançada em 2019, tendo a raizeira como uma das principais personagens.

 

sábado, 21 de novembro de 2020

Epistemologias Ciganas, Interculturalidade e Produção Social dos Sentidos: uma articulação decolonial no campo da Comunicação e Saúde

Membro da AEEC-MT publica capítulo em livro publicado pela Associação Latino Americana de Investigadores em Comunicação (ALAIC) e a  Universidade Autônoma de Barcelona

Acaba de ser publicado (29 de outubro de 2020) um capítulo de autoria do assessor para ciência e comunicação da AEEC-MT, Aluízio de Azevedo, no livro “Comunicación Y Salud em América Latina: Contribuiciones al Campo” (Comunicação e Saúde na América Latina: contribuições ao campo”).

Com o título “Epistemologias Ciganas, Interculturalidade e Produção Social dos Sentidos: uma articulação decolonial no campo da Comunicação e Saúde”; o texto é escrito em conjunto com a professora da Fiocruz, Inesita Soares de Araujo e aborda a construção epistemológica que Aluízio realizou no doutorado, incluindo, de forma inédita, os saberes produzidos pelas comunidades ciganas no diálogo acadêmico. 

A comunidade cigana mato-grossense foi uma das principais participantes desse trabalho de doutorado e está contemplada no capítulo da publicação. 

Editada pelo Institut de la Comunicació de la Universitat Autònoma de Barcelona (Incom-UAB), a obra foi organizada por Mónica Petracci e Janet García Gonzáles, em conjunto com a Equipe Coordenadora do Grupo de Trabalho (GT 5) de Comunicação e Saúde da Associação Latino Americana de Investigadores de Comunicação (ALAIC).

A obra é uma compilação de trabalhos que foram apresentados no GT durante os contressos de Montevideo (2012), Lima (2014), México (2016) e Costa Rica (2018) e segundo suas organizadoras, tem objetivos acadêmicos e institucionais.

“Apuntan al fortalecimiento y visibilidad del campo Comunicación y Salud, del Grupo de Trabajo (GT) en Comunicación y Salud de la Asociación Latinoamericana de Investigadores en Comunicación (ALAIC) y de las relaciones entre los y las investigadores de la región”, diz as autoras.

Para fazer download do E-book: https://ddd.uab.cat/record/233410

Resumo do capítulo “Epistemologias Ciganas, Interculturalidade e Produção Social dos Sentidos: uma articulação decolonial no campo da Comunicação e Saúde”

Evidenciamos os arranjos teóricoepistemológicos que tomou por base uma multireferencialidade de saberes que envolveu a articulação de quatro matrizes: os estudos culturais, os estudos semiológicos, os estudos decoloniais e a filosofia (de vida) cigana, que foi tomada como um quarto modo de produzir conhecimento, conceitual e epistemologicamente tão válida quanto as correntes científicas.

Destacamos os conceitos centrais de cada matriz e os modos que os articulamos para a produção de um diálogo científico e inovador com as pessoas ciganas, reconhecendo que têm saberes acumulados, portando, devem ser levadas em consideração, especialmente no que diz respeito à análise e à reflexão sobre a saúde cigana.

A “Filosofia Cigana” se sustenta em narrativas que povoam as memórias e histórias orais e se fazem presentes na estruturação de elementos culturais, simbólicos e comunicacionais, de grupos ciganos brasileiros e portugueses da etnia Kalon, que são postos em prática e ensinados de geração em geração.

Elementos que ancoram seus modos de ver e viver a vida, formas de organização social e de estar no mundo, que subvertem e/ou resistem aos modos capitalistas de vida e sua ênfase no consumo e no descarte do ser humano, assumindo valores de solidariedade e amizade. Assim, descartamos a visão estereotipada da historiografia moderna de que seriam vagabundos, trambiqueiros, ou criminosos perigosos (ladrões, sequestradores, trapaceiros etc.).

Assessoria para Ciência e Comunicação da AEEC-MT

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Ciganos serão incluídos em políticas afirmativas de cotas na Unilab do Ceará

Após portaria da Instituição, Grupo de Trabalho é criado para elaborar ações inclusivas e determinar grupos identitários contemplados e quantidade de vagas a serem disponibilizadas

A comunidade cigana foi incluída nas políticas de cotas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). O Grupo de Trabalho (GT) para elaboração do projeto de políticas afirmativas estudantis da Unilab no Ceará foi criado após a portaria de número 438 ser assinada pelo reitor Roque do Nascimento Albuquerque, na última segunda-feira (19). Tendo como objetivo elaborar ações inclusivas na Instituição, a proposta é pioneira no Estado por incluir os ciganos dentro dos grupos contemplados.

Segundo a portaria, o GT é responsável pela “elaboração das diretrizes, critérios de seleção, vagas e permanência das populações contempladas no Programa de Ações Afirmativas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira”.

Na perspectiva do presidente do Instituto Cigano Brasil (ICB), cigano Calon, Rogério Ribeiro, essa ação é de “extrema importância” para reduzir desigualdades históricas, inspirar a proposta em outras Instituições de ensino superior e incentivar a entrada e permanência desse grupo em espaços do ensino superior.

Conforme aponta, somente da etnia Calon são contabilizados cerca de 20 mil ciganos no Ceará, distribuídos em pelo menos 60 municípios. Porém, há somente duas estudantes autointituladas ciganas na Instituição.

“Cerca de 70% dos ciganos são analfabetos. Então isso é um incentivo e grandeza de uma instituição como a Unilab atender também o povo cigano”, compartilha.

Inclusão

A cigana do subgrupo Rom, Kalderash, Flor Fontenele, vê essa inclusão como “uma conquista tremenda, enorme”. Sendo uma das duas estudantes autointituladas ciganas que está na Unilab Ceará, cursando o 4º semestre de Bacharelado em Humanidades, compreende que há uma dificuldade de conseguir ocupar o ensino superior e permanecer.

Para além de estudante, ela também está compondo o GT e busca ajudar a identificar o número de ciganos com ensino médio concluído, pois “serão os futuros estudantes que poderão acessar essas cotas”. Além disso, deseja acompanhar as reuniões durante o processo para traçar as diretrizes de seleção. “A nossa defesa nesse momento é que seja um edital específico, ou seja, que ciganos concorram com outros ciganos por essas vagas”, finaliza.

De acordo com o reitor da Unilab, Roque Albuquerque, cigano da etnia Calon, o foco da ação é poder dar assistência a grupos em situação de vulnerabilidade e historicamente excluídos do ensino superior. 

Os ciganos, por sua história, também foram contemplados para o programa de cotas e essa inclusão, para ele, é “de suma importância”.

“Eu sou um cigano e me tornei o primeiro reitor cigano em uma universidade pública no Brasil. Incluir os ciganos é uma correção histórica, é importante que saibam que estamos aqui e que existimos. Somos capazes. Se eu cheguei, outros podem chegar. É marco”, declara.

Grupo de Trabalho

Segundo o pró-reitor de Políticas Afirmativas e Estudantis da Instituição, James Moura, durante a fase inicial de planejamento, serão definidos os critérios de seleção dos grupos específicos. Além dos ciganos, devem ser contemplados outros grupos identitários, como indígenas e quilombolas.

“As ações afirmativas têm um papel de um processo de reparação histórica das desigualdades de acesso de ensino. Apesar das políticas de cotas existirem, precisa avançar e contemplar outros grupos que também foram historicamente marginalizados no sentido de acesso ao ensino superior”, declara.

O GT possui um prazo de 60 dias para apresentar um documento a fim de direcionar, de modo mais prático, as políticas afirmativas. Após a finalização do GT em janeiro, as propostas ainda passarão por trâmites internos e jurídicos dentro da Unilab, não havendo, portanto, um prazo efetivo para o início de adoção das cotas.

Disponível em: agenciabr.com.br/ciganos-serao-incluidos-em-politicas-afirmativas-de-cotas-na-unilab-do-ceara/ 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

AEEC-MT participa de consulta da ONU para agenda 2021 da Seção de Povos Indígenas e Minorias


 Encontro reuniu mais de 20 ativistas ciganos de países como Brasil, Argentina, Colômbia e Estados Unidos

A Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT) participou, nesta quinta-feira (15/10), de uma reunião da Seção de Povos Indígenas e minorías do Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas (IPMS) para debater sobre o planejamento da agenda 2021 da instituição para os povos Romani que vivem nas Américas, especialmente, na América Latina.

A abertura da consulta, que ocorreu na plataforma zoom entre 09h e 13h (horário de Cuiabá), foi realizada pelo chefe da Seção de Povos Indígenas e Minorías do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (OACNUDH), Paulo David, com a coordenação da Oficial de derechos humanos especialista em minorias da OACNUDH, Belen Rodriguez de Alba.

Com o intuito de examinar a melhor maneira de utilizar o tempo e os recursos humanos para apoiar aos defensores dos direitos humanos e a sociedade civil cigana nas Américas em 2021, o encontro reuniu mais de 20 ativistas de países como Brasil, Argentina, Colômbia e Estados Unidos.

Entre eles, o Assessor para Ciência e Comunicação da AEEC-MT e membro do coletivo internacional #OrgulhoRomani, o Kalon Aluízio de Azevedo, que mediou a mesa 2 “Reconhecimento, Participação, proteção e marco jurídico"; e a integrante do coletivo #OrgulhoRomani e da Associação Zor, de Argentina, a Romi brasileira Aline Miklos, que mediou a mesa 1 “Preocupações e questões de direitos humanos que afetam as populações romani nas Américas”.

Além dessas duas mesas, o encontro contou com outras três: “Aspectos de gênero e interseccionalidade", mediada pela ativista Romi brasileira, Veruska Vanconcelhos; “Conhecimento e uso do sistema das Nações Unidas”, cuja mediação foi feita pela Romi colombiana, Ana Dalila Gomez Baos; e “Até à frente: opções para configurar a agenda 2021", mediada pelo Rom argentino Jorge Bernal.

Aline Miklos apresentou a questão dos direitos humanos, da discriminação e do racismo que enfrentam as comunidades ciganas nas Américas. Ela destacou a importância em se construir planos nacionais de integração para os povos romani em todos os países americanos. 

Já Aluízio apresentou um debate sobre a situação atual do reconhecimento, da inclusão e da proteção dos povos ciganos, refletindo sobre as leis e as políticas afirmativas, apresentando um panorama atual em curto e médio prazo, especialmente, acerca dos impactos das crises pandémicas, que aflorou o racismo estrutural e problemas sociais históricamente enfrentados pelas pessoas romani.

O representante da AEEC-MT ponderou ainda que setores governamentais, organizações nacionais e internacionais da sociedade civil organizada e o próprio movimento social cigano como aspectos positivos para mudar essa realidade de exclusão que foi agravada pela pandemia do Covid-19 em todos os países latinoamerianos. Por fim, Aluízio também lembrou a importância de políticas públicas transversais e interseccionais, que favoreçam questões de gênero voltadas para mulheres e LBGTQI+ ciganos.

Várias propostas surgiram durante a reunião, entre elas, a de que cada país crie um grupo de trabalho para levantar as principais demandas e especificidades. O grupo também sugeriu a criação de um documento sintético que será assinado por todos os participantes da consulta para ser entregue ao Fórum de Minorías e ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU.

O professor e ativista kalon brasileiro da Bahia, Jucelho Dantas, além de integrantes da Associação Internacional Sarah Mailê Kali, também participaram da reunião representando o movimento cigano brasileiro.

Assessoria de Comunicação da AEEC-MT

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Comunidade Cigana prorroga mantado da diretoria da AEEC-MT

A diretoria continuará no mandato por mais um ano, quando terão novas eleições

A Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT) decidiu por unanimidade, no último dia 27 de setembro (domingo) prorrogar o mandato da sua nova diretoria para o próximo ano, no período entre 01 de outubro de 2020 a 30 setembro de 2021. A Assembleia Geral ocorreu entre 09h e 09h40, de maneira virtual pela plataforma zoom.

Conheça mais sobre o histórico da AEEC-MT e da comunidade cigana kalon em Mato Grosso aqui: https://aeecmt.blogspot.com/p/historico-e-objetivos.html

Texto: Aluízio de Azevedo, Assessor para Ciência e Comunicação da AEEC-MT

Fotos: Arquivo de família Alves Pereira

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Nota de pesar pelo falecimento de Albéricle Cabral Nunes

Albéricle era gestor de território da empresa Martins Comércio e pertencia a comunidade Kalon do município de Rondonópolis (MT)

Com profundo pesar, a Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT) comunica o falecimento de seu membro, Albéricle Cabral Nunes, 39 anos, nesta quarta-feira (02.09), vítima de complicações causadas pelo Covid-19.

As nossas condolências e sentimentos à sua esposa Wérica Souza, à sua mãe Leila Cabral Nunes e aos seus dois filhos Gabriele e Adrian. Que nosso senhor Jesus Cristo conforte os vossos corações neste momento de luto.

O enterro será nesta quinta-feira (03.09), às 10h, no Cemitério Vila Aurora, em Rondonópolis, onde Albéricle nasceu, residia e trabalhava como gestor de território na empresa Martins Comércio e Serviço de Distribuição e faleceu após 13 dias internado em uma clínica privada no município de Várzea Grande. 

Esta foi a segunda pessoa da comunidade cigana mato-grossense a perder a vida para o Covid-19. No dia primeiro de julho perdemos também o nosso primo José Roberto Martins Júnior. 

A situação se torna muito dolorosa, devido as medidas de isolamento social que impedem a realização das últimas homenagens coletivas do ritual fúnebre, um dos princípios centrais na cultura cigana Kalon.

Estamos nos esforçando, enquanto comunidade para não realizar este ritual, mas diante do cenário pandêmico e da não atuação do Estado junto aos povos e comunidades tradicionais, solicitamos novamente a implementação de um plano emergencial de prevenção e enfrentamento ao Covid-19 voltado especificamente para tais populações, especialmente, as comunidades ciganas.

Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT)

domingo, 16 de agosto de 2020

Edital de Convocação para Assembleia Geral de prorrogação de Mandato da Diretoria

EDITAL DE CONVOCAÇÃO PARA ASSEMBLEIA GERAL

DE PRORROGAÇÃO DE MANDATO DA DIRETORIA

PERÍODO OUTUBRO 2020 A SETEMBRO DE 2021

A Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), por meio da sua diretoria, devidamente representada pela sua Presidente, Sra. Fernanda Alves Caiado, em consonância com o estabelecido pelo Estatuto Social da AEEC-MT, convoca todos os associados para participação em Assembleia Geral para prorrogação de mandato da Diretoria para o período Outubro de 2020/Setembro de 2021, composta pelos seguintes membros: presidente, vice-presidente, primeiro secretário, segundo secretário e tesoureiro (Art. 24 do Estatuto Social da AEEC-MT).

Conforme previsto no Estatuto Social da AEEC-MT, podem participar da Assembleia Geral os associados efetivos, desde que em dia com suas obrigações para com a associação. Desta forma, A AEEC-MT convoca todos os associados para participarem, de acordo com o cronograma abaixo:

1) Edital de Convocação de Assembleia Geral Extraordinária para prorrogação de mandato da Diretoria: 17/08/2020;

2) Assembleia Geral Ordinária para eleição e apuração dos votos: 20/09/2020, a partir de 09h na plataforma Zoom, ID: 239 415 7859 e Senha de acesso: Calon, no seguinte link: https://us04web.zoom.us/j/2394157859?pwd=T3VSZVlIRXFhazJ3VnNxSFlpSmYrUT09

Dúvidas sobre poderão ser enviadas para o endereço eletrônico da AEEC-MT (aeecmt@gmail.com), que serão esclarecidas pela Diretoria da Associação.

Cuiabá - MT, 17 de Agosto de 2020.

 

FERNANDA ALVES CAIADO

PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO ESTADUAL DAS ETNIAS CIGANAS DE MATO GROSSO (AEEC-MT)


domingo, 12 de julho de 2020

Mídia e comunidades ciganas: a construção do imaginário ocidental e o (anti) ciganismo


Menino da etnia Calon assiste TV dentro da barraca enquanto almoça sentado no chão.
Foto: arquivo blog Estudos Ciganos Brasileiros

Por Aline Miklos, Gabriela Marques e Aluízio de Azevedo para o Blog Estudos Ciganos Brasileiros
Em maio de 2019, um deputado e seu assessor foram assassinados em plena luz do dia, no centro de Buenos Aires e em menos de 24 horas os assassinos foram presos. Até hoje não se sabe o verdadeiro motivo do crime, mas a origem étnica dos criminosos foi descoberta assim que foram presos e a partir de então a mídia e as autoridades políticas começaram a especular sobre o tema. A ministra de segurança da época, Patricia Bullrich, querendo mostrar a eficiência de seu governo, postou em sua conta de twitter a seguinte frase: "Todo clã mafioso cigano já está detido".

Esta afirmação serviu como uma carta branca a toda forma de preconceito. Assim, alguns jornais começaram a dizer que os ciganos costumavam andar armados. No principal jornal do país apresentaram um mapa mostrando onde estava concentrado o maior número de ciganos por bairro em Buenos Aires. Dois dias depois, a filha da pessoa que estava dirigindo o carro onde se encontrava o assassino foi à delegacia perguntar pelo seu pai e imediatamente presa por suspeita de participação no crime.

Com este evento, os jornais foram além: começaram a dizer que esta mulher era amante do assessor do deputado, que o crime era uma "questão de honra" e havia sido cuidadosamente premeditado. Diziam que crimes de honra eram corriqueiros nas comunidades ciganas. A foto desta mulher foi publicada em vários meios de comunicação e quanto mais ela dizia que não conhecia as vítimas, mais era condenada não só pela mídia, mas também pelos que destilavam comentários de ódio na internet. 

Por algumas semanas o número de casos de ataques racistas aumentou absurdamente no país e os ativistas que chegaram a ir a rádios e programas de televisão foram bombardeados por mensagens de ódio. A polícia não conseguiu provar nenhum vínculo entre uma das vítimas e a filha do motorista e logo ela foi liberada.

A partir deste caso, poderíamos perguntar: quais as nuances entre a relação das comunidades ciganas e a mídia? A mídia contribui para a construção estereotipada e racista do imaginário sobre as comunidades, culturas e pessoas ciganas?  Os modos como a imprensa as abordam é diferente dos modos com que os filmes, as músicas, as peças de teatro, os livros de literatura ou os textos e teorias científicas? É sobre essas e outras perguntas que pretendemos refletir nesse texto, sem a pretensão de esgotá-las.

A construção do imaginário ocidental e do imaginário brasileiro sobre @s cigan@s foi baseada tanto em estratégias de violência física, incluindo inúmeras leis anticiganas, como prisão, degredo, etc; como em estratégias de violência simbólica para sua opressão e exclusão. No campo simbólico, populações ocidentais criaram processos de identificação e diferenciação racistas e estereotipadores e construíram @ cigan@ como o seu “outro”, ao modo como construíram o outro oriental.

Não por acaso, os ciganos espanhóis atraíram tanto interesse de artistas e viajantes europeus no século XVIII e sua presença na sociedade espanhola era vista como a representação do Oriente no Ocidente, uma aproximação a um Outro que se acreditava distante (Sierra, 2017). Este processo de construção da outreidade também fez com que a maioria das narrativas construídas sobre a origem dos povos ciganos buscasse esta origem fora do que consideravam como "civilização", ou seja, fora do continente europeu. Desta forma, a teoria acadêmica sobre a origem indiana destes povos se encaixou perfeitamente neste cenário de exclusão.

Por seu estilo de vida e valores diferentes dos europeus, as pessoas ciganas  foram historicamente associadas a intrusos exóticos, sendo que uma das consequências desta construção simbólica é o fato de que a política ocidental tem sido genocida ao longo de séculos com a população romani, sendo o nazismo o exemplo mais cruel, quando 500 mil pessoas ciganas foram assassinadas, sob a justificativa de serem raças inferiores, ou não-humanos, se observarmos do ponto de vista da teoria decolonial.

Identidade e estereótipos - A questão da nomeação/classificação “ciganos” é um dos processos de opressão simbólica contra as pessoas ciganas. Essa realidade é reverberada nos dicionários de língua portuguesa e língua espanhola, que os classificam como “trapaceiros”. O mesmo ocorreu com a construção conceitual da palavra “Ciganos” ou da “cultura cigana”, o estudo de sua história, grupos e tradições. Os estudos ciganos, chamados também de “ciganologia”, de acordo com Moonen (2011) foi bastante anticigana durante séculos e auxiliou na construção deste imaginário racista e hiper negativo.

Um exemplo desta realidade é o escritor Grellmann, que foi traduzido para várias línguas. Segundo Moonen (2011, p. 132) o autor “só teve contatos esporádicos com alguns poucos ciganos e que, em lugar de realizar pesquisa de campo, preferiu citar outros autores, inaugurando assim uma prática que tornar-se-ia comum entre os ciganólogos”. 

“Grellmann costumava citar fontes jornalísticas sensacionalistas. Num capítulo sobre “Comidas e Bebidas Ciganas”, por exemplo, transcreveu a notícia de jornais de 1782 que acusava os ciganos de serem canibais, comedores de carne humana. Na época, 84 ciganos foram presos como suspeitos de terem assassinado e depois comido algumas pessoas desaparecidas: 41 foram decapitados, enforcados ou esquartejados. Em 1783, logo após a publicação do livro, que se tornou um best-seller mundial com edições em várias línguas, ficou provado que esta acusação não teve o menor fundamento e que os 41 ciganos mortos (e os outros ainda presos) tinham sido inocentes: as pessoas que supostamente tinham virado churrasco cigano, reapareceram mais vivas do que nunca (MOONEN, 2011, p. 132).

Bens simbólicos e a opressão social - E o que a imprensa e a mídia tem a ver com tudo isso? Como órgãos mediadores comunicacionais, formadores de opinião e divulgação de informações, notícias e outros produtos simbólicos das áreas artísticas e culturais, tem tudo a ver. Elas dialogam com a ciência e o imaginário coletivo, mutuamente, reforçando, criando e mantendo tais visões negativas e estereotipadas das pessoas ciganas. Em outras palavras, podemos dizer que essas indústrias do entretenimento são empresas que possuem os seus interesses próprios, sendo pautadas e pautando os fluxos, as informações e os temas importantes para a sociedade.

Assim, quando falamos sobre a representação das comunidades ciganas nos meios de comunicação, temos que situar o debate no contexto mais amplo da representação dos grupos minoritários nesses espaços. Vale mencionar que o tema está diretamente influenciado pelo modo como a mídia se organiza na maior parte do mundo, ou seja, como parte de grandes grupos empresariais, sejam eles exclusivamente do campo da comunicação - onde  o mesmo grupo é dono de emissoras de rádio, de televisão, de jornal impresso, revista e páginas na internet - ou não exclusivamente deste campo, onde  grupos empresariais de outros setores se infiltram nos meios de comunicação, vistos como  mais uma oportunidade de fortalecer seus negócios (RAMONET, 2012; CAGÉ, 2016).

Esta informação é importante porque nos ajuda a entender quem controla os meios de comunicação e, portanto, seus conteúdos. Classificados por muitos teóricos como o 4o poder, os meios de comunicação formam parte das estruturas de decisão, influenciando e sendo influenciada por elas. No caso, estamos falando de poder simbólico, o poder de fazer ver e fazer crer (Bourdieu, 1989). Assim como ocorre num mercado de bens físicos, os bens culturais em suas mais diversas linguagens (meios de comunicação, teorias científicas, cinema, música, literatura, teatro, etc), os bens culturais podem ser comparados a um mercado simbólico, em que são produzidos, circulados e consumidos e isso não apenas do ponto de vista da mídia, como de todo e qualquer ato discursivo (Araújo, 2002). Há negociações para que um ponto de vista seja aceito e legitimado. Há conflitos e tensões entre os interlocutores de um ato comunicativo para a prerrogativa da última palavra (Pinto, 2002).

Por isso, não é de se estranhar que seus profissionais, tidos como trabalhadores de perfil intelectual e/ou criativo, façam parte em sua maioria da sociedade majoritária (ROSS; Playdon, 2001); enquanto os grupos minoritários, incluindo os ciganos, ocupem lugares de interlocução marginais nas redes de comunicação tradicionais (Araujo 2002), devido a uma série de fatores e fontes de mediação, que são postas em prática e ação por meio de contextos sociais, econômicos, políticos e culturais que incluem, por exemplo, o histórico de racismo e a exclusão social (Silva Júnior, 2018).

A ausência de pessoas pertencentes a grupos minoritários como agentes destes meios de comunicação faz com que eles sejam representados, basicamente, de duas maneiras: por meio de estereótipos hiper negativos ou por meio da exotização e folclorização seja de sua aparência, seja de sua cultura e costumes (OLEAQUE, 2014). Quando nenhuma destas duas formas de representação acontece, o que se nota é a invisibilização, a ausência desses grupos, suas narrativas, filosofias, olhares sobre o viver e ver o mundo, mitologias e saberes; seja nos conteúdos informativos, seja nos conteúdos ficcionais (WILLEM, 2010), fazendo com que suas vozes e discursos sejam silenciados, assim como foram silenciados historicamente.

Este padrão pode ser aplicado às populações ciganas em diferentes países. Entre os estereótipos negativos podemos destacar, tanto nos conteúdos ficcionais, como não-ficcionais, que as pessoas ciganas estão sempre relacionadas à pobreza ou ao mundo do crime, a conflitos, assassinatos, brigas, roubos e outras atividades ilegais. No caso do conteúdo informativo, a situação é ainda mais grave já que diferentes códigos deontológicos e éticos da profissão de jornalista orientam a não mencionar a origem étnica das pessoas mencionadas nas matérias (GONÇALVES, 2019). Qual a diferença em mencionar que um roubo foi feito por um cigano ou por um branco? A mesma que, na lógica do jornalismo comercial, faz com que negros flagrados com drogas sejam traficantes enquanto brancos sejam usuários. Por isso, não é possível encontrar nenhuma manchete que diga “Três brancos são presos após roubo de carros”.

Folclorização x Ativismo - Já os casos de folclorização se dão, por um lado, quando os meios de comunicação dão destaque a algum membro da comunidade cigana devido à sua habilidade em alguma área: a dança, a música, o teatro, o esporte. Estes sujeitos são destacados como portadores de um dom e uma exceção em suas comunidades. Por outro lado, a exotização acontece como a outra face da moeda do desconhecimento. Neste sentido, os sujeitos ciganos são representados pelo mistério, como se fossem portadores de tradições e costumes que fogem do entendimento da sociedade majoritária, mas que são admirados por  representarem algo distante de sua realidade.

No Brasil, podemos exemplificar estes casos pela relação fácil que a maioria das pessoas faz entre ser cigano e ser livre, ou entre ser mulher cigana e ser atraente e conquistadora, ou entre ser cigano e ser destemido. Estes estereótipos estão presentes em diversas músicas brasileiras e, de algum modo, na clássica telenovela Explode Coração. Quando não se encaixam em nenhum dos exemplos mencionados acima, as populações ciganas estão simplesmente ausentes dos meios de comunicação, esquecidas, silenciadas e invisibilizadas na complexidade de seus modos de ver e viver o mundo. Tudo isto como um espelho da vida cotidiana, influenciando e sendo influenciado pelo dia a dia de discriminação e preconceitos que o Anticiganismo produz.

Outra  tendência dos meios de comunicação é a  homogeneização das pessoas romanis, sob o termo genérico “ciganos”, do mesmo modo que ocorreu com os povos indígenas e os povos negros, sendo classificados independentemente de diferenças culturais, linguísticas, de costumes e organização. Mas é importante destacar que os diferentes grupos ciganos não seguem o mesmo processo de construção de suas culturas e identidades.

Não há uma essência cultural cigana única, mas sim múltiplas identidades, com distintos grupos, subgrupos, que variam conforme a região e o país onde se movimentam. Os diferentes grupos ciganos costumam se autoidenficar como Rom, Kalon ou Sinti, grupos que possuem costumes, línguas e tradições diferentes e devem ser entendidos em sua diversidade e não como um homogêneo único, como costuma ocorrer nos meios de comunicação, ampliando os estereótipos acerca dessas populações. 

No decorrer dos tempos todos estes grupos se espalharam também por outros países da Europa e foram deportados ou migraram inclusive para as Américas. Diante desta realidade, resta às comunidades ciganas buscar espaços alternativos para amplificar suas vozes. Por isso, nos últimos anos foi possível ver uma grande atuação de ativistas ciganas e ciganos na internet, fazendo uso especialmente das redes sociais .

Um exemplo poderia ser a organização "Gitanas feministas por la diversidad" que possui contas em todas as redes sociais e, inclusive, oferecem cursos online sobre feminismo cigano. Na América Latina, o coletivo #OrgulhoCigano mantém uma live todas as semanas no Instagram sobre temáticas relacionadas às comunidades ciganas. Existem também iniciativas que pretendem monitorar o discurso de ódio tanto nos meios de comunicação quanto nas redes sociais, como é o caso de Romani Pativ, ligada à Plataforma Khetane, da Espanha.

Estas iniciativas se colocam não só como um espaço alternativo para fazer frente ao discurso da mídia hegemônica, mas também como uma possibilidade de construção de redes entre ciganas e ciganos de diferentes partes seja em nível nacional, seja internacional. Isso possibilita não só o seu fortalecimento enquanto grupo, como também força os meios de comunicação tradicionais a mudar pouco a pouco seus discursos, crítica tão necessária à mídia já que, segundo os próprios relatores sobre questões das minorias da ONU, há um uso generalizado de estereótipos nas representações dos ciganos, suas culturas e identidades.


Referências Bibliográficas

ARAUJO, I. S. Mercado Simbólico: interlocução, luta, poder - um modelo de comunicação para políticas públicas. 2002. Tese (Doutorado). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand do Brasil, 1989.
CAGÉ, Julia. Salvar los medios de comunicación. Barcelona: Editorial Anagrama, 2016.
GONÇALVES. G. M. Medios de Comunicación y Cohesión Social: Consumo mediático y cultural de la población gitana de Cataluña. Tese de Doutorado. Universidad Autónoma de Barcelona: Cerdanyola del Vallés, 2019.
MOONEN, F. Anticiganismo: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife, PE: 2011. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/1_fmanticiganismo 2011.pdf
OLEAQUE, Joan M. Los gitanos en la prensa española – Variación y reiteración de los planteamientos de los diarios ABC, El País y La Vanguardia en la representación de los gitanos como grupo (1981-2010). Tesis Doctoral Universitat de València: Valencia, 2014.
ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Direitos Humanos Genebra, 2015: A luta contínua das comunidades ciganas em todo o mundo - Novo relatório da perita das Nações Unidas sobre as minorias – Tradução livre. Genebra: 2015.
ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Direitos Humanos Brasil, 2016: Relatorio do Seminario regional sobre la situación del Pueblo Rom en las Américas. Brasília: 2016.
PINTO, M. J. Comunicação e Discurso: Introdução à Análise de Discursos. São Paulo: Hacker Editores, 2002.
Silva Júnior, A. A. (2018). Produção Social de Sentidos em Processos Interculturais de Comunicação e Saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal. (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde, ICICT, FIOCRUZ. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/33131
RAMONET,  Ignacio. A explosão do jornalismo: das mídias de massa à massa de mídias. São Paulo: Publisher Brasil, 2012.
ROSS, Karen; PLAYDON, Peter (Ed.). Black Marks: Minority Ethnic Audiences and Media.
Ashgate Publicshing Limited, Hampshire, 2001.
SIERRA, María. Estereotipos gitanos del siglo XIX – un invento romántico. Andalucía en la
 Historia, año XV, número 55, enero-marzo 2017, Centro de Estudios Andaluces, Sevilla, p. 21-23.
WILLEM, Cilia. ‘Roots and Routes’ - Young people from diverse ethno-cultural backgrounds
constructing their identities using digital media. Tesis Doctoral Universitat de Barcelona:
Barcelona, 2010.


Ciganos buscam alternativa de renda durante pandemia de covid-19


Falta de dados e políticas específicas são principais desafios

Publicado em 12/07/2020 - 08:00 Por Pedro Rafael Vilela - Repórter da Agência Brasil     - Brasília

Conhecidos pela grande habilidade e desenvoltura comercial, os ciganos têm sofrido com a impossibilidade de venderem seus produtos. Grande parte trabalha com venda e troca de diferentes tipos de produtos e utensílios, mas foi necessário paralisar as atividades em meio à pandemia do novo coronavírus. Sem alternativas de renda, muitas famílias têm dependido da assistência do poder público e de doações, mas que não chegam a todos. É o caso da comunidade de ciganos que vive em Sousa, no sertão da Paraíba, uma das maiores do país, com mais de 450 famílias, e também uma das mais vulneráveis.

"Historicamente, nós ciganos sempre encontramos muitas dificuldades para conseguir emprego, por isso a troca e a venda são tão importantes, mas desde o início da quarentena deixamos de trabalhar", afirma Francisco Bozzano, um dos líderes ciganos em Sousa. Apesar de o acampamento não ficar na área urbana do município, a chegada do novo coronavírus deixou a comunidade apreensiva. 

"A gente passou a deixar só uma pessoa ir até a cidade para comprar algo, para evitar ao máximo o contágio. Sabemos que se alguém pegar esse vírus, não vamos ter muito acesso à saúde e essa pessoa pode morrer", diz Bozzano, que reclama do posto de saúde que não tem médico e da dificuldade de obter o auxílio emergencial de R$ 600 oferecido pelo governo federal. Como líder de uma extensa família, Bozzano tentou inscrever as pessoas no programa, mas nem todos conseguiram se cadastrar ou tiveram o benefício concedido.

De acordo com dados do Ministério da Cidadania, 5.604 famílias ciganas estão inscritas no programa Bolsa Família. Elas passaram a receber o auxílio emergencial durante a pandemia, mas o governo ainda não tem dados sobre os demais ciganos que conseguiram obter o benefício a partir do cadastro como trabalhadores informais, realidade da grande maioria. 

"Foi solicitado à Secretaria Especial do Desenvolvimento Social do Ministério da Cidadania, em 20 de maio de 2020, as informações disponíveis sobre o acesso dos povos e comunidades tradicionais ao auxílio emergencial, sobre o total de beneficiados, casos em análise e casos não deferidos", informou a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em nota enviada à reportagem.

Dados

Um dos principais desafios para lidar com a situação dos ciganos na pandemia é a falta de dados. Não se sabe ao certo o tamanho dessa população no Brasil nem sua distribuição geográfica. O único dado oficial começou a ser coletado em 2011, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) concluiu um levantamento sobre a existência de acampamentos ciganos em 291 municípios de 21 estados. No entanto, o levantamento é impreciso, já que só foram contabilizadas as prefeituras que responderam à pesquisa. Além disso, a maioria dos ciganos no país não está mais localizada em acampamentos e muitos já se fixaram em áreas urbanas, constituindo em bairros inteiros onde praticamente só vivem ciganos, já que a cultura de viver em proximidade é muito forte entre eles. 

"O IBGE só contabiliza acampamento, e acampamento é o mínimo. Você só pode conduzir política pública séria no país é se você tiver dados e números", afirma Elisa Costa, diretora da Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK), uma entidade sem fins lucrativos, com sede em Brasília, que atua na divulgação da cultura cigana e na defesa dos direitos humanos dessa população tradicional. 

"Outro imenso problema é que, como parte dos ciganos mantém uma mobilidade, eles não costumam ter registro de nascimento de seus filhos, a partir de quando grande parte dos ciganos não tem nem existência jurídica. Os que têm, muitas vezes não conseguem ter os demais registros, como CPF [Cadastro de Pessoa Física], carteira de identidade. Quando chega uma pandemia, encontra um grupo já fragilizado economicamente, civilmente, juridicamente, não consegue estar no Cadastro Único de programas sociais do governo, então a crise cai sobre a cabeça dos ciganos de uma maneira mais dolorosa", afirma Luciano Mariz, subprocurador-geral da República, considerado um dos precursores da causa cigana no Ministério Público Federal (MPF), órgão que tem sido importante no reconhecimento e na garantia de direitos dessa população.

Segundo a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o IBGE fará um censo populacional dos ciganos, mas ainda não há data definida. "A SNPIR trabalha junto ao IBGE para a construção deste trabalho com a realização de seminários para aprimoramento dos mecanismos de pesquisa do instituto junto às instituições representativas", informou o órgão.

Avó e netos do clã Kalderash durante pandemia, no Rio de Janeiro. - Arquivo/AMSK Brasil

Da diáspora ao reconhecimento

A teoria mais aceita entre os estudiosos é que os ciganos têm origem na Índia, a partir de uma dissidência de castas no país asiático, há cerca de mil anos, que fez com que o grupo se espalhasse primeiro pela Europa e depois para o resto do mundo (diáspora). No Brasil, acredita-se que os primeiros ciganos chegaram em 1574 ou um pouco antes, segundo registros dos padres jesuítas. Há três etnias mais importantes: os Calon, grande maioria no país, oriundos da Espanha e Portugal, os Rom, com origem na Romênia, Turquia e Grécia, e os Sinti, que vieram principalmente da Alemanha e da França.

A perseguição constante estimulou o caráter nômade do povo cigano e desenvolveu sua característica mercantil, mas também fez com que uma série de mitos, preconceitos e estereótipos fossem associados à comunidade. "As sociedades locais na Europa e nas Américas atribuíam qualquer tipo de aberração a esse grupo de forasteiros para eles irem embora, foi aí que se formou um imaginário. Como se fosse traço cultural, passou-se a acreditar que ciganos roubam crianças, que são ladrões, mas isso foi atribuído ao nosso povo por pessoas que não queriam que a gente ficasse no mesmo local que eles", conta Anne Khelen, de Maceió (AL), uma cigana descendente dos Louvara, um sub-clã dos Rom.

A primeira legislação a mencionar a presença cigana no Brasil só foi editada na década de 1930, no governo Getúlio Vargas, mas com o objetivo de proibir a entrada dessa população no país. Nas décadas seguintes, os ciganos permaneceram na invisibilidade e sobreviveram, no plano internacional, até mesmo ao nazismo, quando a perseguição de Adolf Hitler na Alemanha do final da década de 1930, durante o Terceiro Reich, resultou no holocausto de cerca de 1 milhão de ciganos. 

Em território brasileiro, os ciganos só passaram a ter um reconhecimento público mais visível no final da década de 1990, durante as primeiras discussões étnico-raciais no plano nacional de direitos humanos. Mas a agenda passou a ganhar mais impulso a partir de 2003, com a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério. Em 2006, um decreto criou o Dia Nacional do Cigano, celebrado em 24 de maio. Em 2011, o Ministério da Saúde editou a Portaria 940, que dispensou a apresentação de comprovante de residência para ciganos itinerantes obterem o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). 

No ano seguinte, o Ministério da Educação publicou uma resolução para assegurar às crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância o direito à matrícula em escola pública, outra demanda dos ciganos. Na prática, no entanto, muitos ciganos reclamam que as medidas não são cumpridas na ponta. "São políticas ainda insuficientes, mas começou a mover o poder público", afirma Igor Shimura, presidente da Associação Social de Apoio Integral aos Ciganos (Asaic).  

A expectativa agora é que o governo avance numa agenda mais ampla de garantia de direitos, mas também da sua promoção. Além do Plano Nacional do Cigano, que está em construção no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei que cria o Estatuto do Cigano, que prevê um conjunto de políticas públicas na área de saúde, educação e cultura para o povo cigano e pode representar um passo importante para tirar essa população da invisibilidade histórica. Se aprovado, o estatuto vai assegurar a obrigatoriedade do ensino da história geral da população cigana nas escolas, a preservação das línguas tradicionais e do patrimônio cultural cigano.

"A gente vive numa sociedade que odeia ou obriga a comunidade cigana a se estereotipar. Se eu não uso dente de ouro, saia, roupas coloridas, não sou cigano, isso é muito doloroso. Muitas famílias preferem simplesmente anular isso, anular essa ancestralidade, mas aí quando a gente vai estudar e pesquisar, a gente se reconhece, por isso é importante dar a esse cigano o direito de conhecer a própria história e se reconhecer nela. Acho que pouco a pouco temos avançado, sou otimista", afirma Anne Khelen.

Edição: Aline Leal