Dos milhões de cartas de fãs e admiradores que recebeu em vida, Charles Chaplin (1889-1977) guardou apenas uma. Curiosamente, não estava assinada por qualquer nome sonante, mas por um desconhecido: um tal Jack Hill. O que dizia de tão importante para o célebre ator a guardar como um tesouro?
A missiva foi descoberta em 2011, 34 anos após a morte de Chaplin, quando a sua filha Victoria abriu a gaveta de uma escrivaninha na mansão da família em Corsier-sur-Vevey, na Suíça. O envelope mostrava que fora remetida ao seu pai por Jack Hill, um octogenário inglês de Tamworth, no início dos anos 70.
Hill chamava-lhe “mentirosozinho” (“little liar”) por, na sua Autobiografia, Chaplin dizer que tinha nascido em Londres. E especificava que na verdade o comediante nascera num acampamento em Black Patch Park – na altura, um grande acampamento cigano perto de Birmingham, Inglaterra.
A descobertas das origens Charles Chaplin acreditou, durante muitos anos, que havia nascido em Londres no ano de 1889, tal como escreveu na Autobiografia, publicada em 1964. Filho de artistas de music hall, uma forma de entretenimento teatral de origem britânica, muito popular entre 1850 e 1960, definido como uma mistura de música popular e comédia, Chaplin nunca conseguiu encontrar a sua certidão de nascimento, algo comum entre as famílias que muito viajavam em consequência da profissão.
E, apesar de saber que o seu pai era meio cigano, o cineasta só pouco antes da morte da mãe, em 1928, ficou a saber que também ela partilhava da mesma etnia. Hannah confessou ao filho que era 100% cigana e irmã de uma rainha desta etnia – portanto, Chaplin também era um cigano. “Ele estava muito ciente das suas origens ciganas, costumava dizer ao meu pai e aos seus outros filhos que eles tinham essa origem e que deveriam ter orgulho nesse facto”, garantiu Carmen Chaplin.
As revelações do documentário Agora, a família Chaplin quer sublinhar as origens do génio do século XX com o documentário Charles Chaplin – Um Homem do Mundo, dirigido e co-escrito, juntamente com Amaia Remírez e Isaki Lacuesta, por duas das suas netas, Carmen e Dolores Chaplin.
O filme, que já se encontra em fase de pré- produção, levará os espectadores numa viagem por França, Suíça, Sérvia, Reino Unido, Romênia e Espanha, propondo uma nova leitura do seu cinema e música do ponto de vista da sua origem.
Ainda não se sabe quem serão os protagonistas, contudo, já foram revelados os nomes dos cineastas Emir Kusturica e Tony Gatlif. “Artistas e criadores com alma romana ou boémia vão participar neste documentário para nos ajudar a reinterpretar o trabalho do nosso avô com essa visão”, explicou Carmen. “Mas não podemos dizer mais nada, porque queremos que seja uma surpresa.
O filme, destinado aos cinemas, será finalizado no verão de 2022, possui 70% de produção espanhola (o restante vem de vários países europeus) e já tem garantida a sua distribuição nos cinemas espanhóis.
As memórias do avô “O avô revelou com grande felicidade ao nosso pai, quando este ainda era criança, toda a história dos seus antepassados ciganos e ele, por sua vez, contou-nos a mesma história quando ainda éramos pequenas”, revelaram as netas, em declarações ao El País.
Carmen Chaplin |
As duas relembram o avô: “Éramos muito jovens, mas lembramo-nos que, no Natal, reuníamos o maior número possível de filhos e netos na Suíça, e Charlie, na sua cadeira de rodas, contava-nos histórias. Infelizmente, não nos lembramos delas, mas lembramo-nos de como nos esforçávamos para estar o mais perto possível da cadeira”, confessa Dolores.
Carmen complementa esta memória: “Também assistíamos a muitos filmes caseiros. O nosso avô filmou muitos vídeos para documentar as suas viagens e os seus momentos de felicidade familiar”.
Com uma banda sonora e composições reinterpretadas de Chaplin, no documentário, também trechos desse material, que contém entrevistas com artistas e filhos de Chaplin, serão combinados com sequências sobre a vida dos ciganos atualmente. “Esta herança cigana ressalta um sentimento de desagregação que o nosso pai sempre carregou com orgulho”, enunciaram ainda as netas ao jornal espanhol.
Chaplin faleceu no dia de Natal de 1977. O seu filho Michael declara: “Ele não entendia os nacionalismos e odiava o conceito de patriota. Gostava de enfatizar, como no discurso do filme O Grande Ditador, que era um cidadão do mundo. Enquanto se disse, por anos a fio, que ele era judeu [o próprio Chaplin encarnou esse papel inúmeras vezes], o nosso pai nunca o negou. O que importa isso? Se as pessoas ficam chocadas em saber que ele era cigano, melhor! Isso vai significar uma abertura em algumas cabeças”.
No trailer do documentário, Michael fala sobre o filme de 1923, O Peregrino, onde um polícia americano empurra Chaplin para o México. No filme, o protagonista cruza a fronteira e depara-se com um tiroteio. Do outro lado, estão as forças de segurança e, por isso, Chaplin deambula pelo deserto com um pé de cada lado. “É um bom exemplo de como os ciganos vivem em dois mundos, o deles e o marcado pelos papéis oficiais”, explica Michael.
Certamente essa condição ajudou a moldar este artista completo. “Charles Chaplin era um músico autodidata e isso é algo muito cigano. Quando se conta aos ciganos que este partilhava dessa etnia, eles respondem que isso é óbvio, tendo em conta o seu sentido de humor, a sua maneira de contar histórias, a comédia trágica nos seus filmes e as brilhantes bandas sonoras”, conclui Carmen.
Disponível em: https://ionline.sapo.pt/artigo/732176/chaplin-o-documentario-que-nos-contara-a-historia-das-suas-origens-ciganas?seccao=Mais_i
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