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terça-feira, 24 de maio de 2022

Por que é importante comemorar o dia nacional dos ciganos?

Data foi estabelecida em 2006 por meio do decreto presidencial 25 de maio de 2006 em homenagem ao dia de Santa Sara Kali

Embora nós povos ciganos estejamos presentes no Brasil desde os primórdios da colonização, durante quase 500 anos de contribuição à construção da história e da identidade nacional brasileira, apenas nos últimos 15 a 20 anos, conseguimos o olhar do Estado e da população majoritária para a construção de acolhimento e reconhecimento desta contribuição.

Ao longo de quase 300 anos, nossos antepassados chegaram ao país degredados de Portugal, expulsos pelo crime de serem ciganas ou ciganos, divergindo da identidade e da sociedade local. Em toda Europa, fomos perseguidos com leis e normas colonialistas e violentas, que entre outras, visavam a nossa assimilação completa, a expulsão ou a eliminação total – exemplo pouco conhecido desta realidade foi o nazismo que assassinou entre 250 e 500 mil pessoas romani.

Os primeiros registros escritos da presença cigana em Portugal são do fim do século XV. Quanto ao Brasil, em 1.574 há uma sentença lusófona contra João de Torres e sua esposa Angelina condenando-os ao degredo em Brasil pelo fato de serem ciganos que não abandonavam seus costumes, cultura e identidade, que entre outros, incluía o andar em bando, o vestir de forma tradicional e o domínio da língua romanó-kaló.

Em Brasil, nossos antepassados já chegavam uma série de proibições, que incluíam violências físicas e simbólicas. Em síntese, queriam apagar a nossa identidade e origem, “civilizar-nos”, diriam as teorias antropológicas evolucionistas. Também por aqui, o estado colonial e depois o estado brasileiro nos perseguiu com inúmeras leis, que se expressavam por normativas federais, estaduais e municipais.

Mestra Diva comprovou que temos saberes: ela foi reconhecida por seus conhecimentos na medicina tradicional cigana, como mestra da cultura mato-grossense em 2020 pelo governo do Estado de MT


As Correrias Ciganas

As polícias de todos os Estados, em especial de Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, durante quase 200 anos ininterruptos manteve em prática a política de expulsão e assassinato dos grupos ciganos, principalmente, os que viviam de forma itinerante e em barracas. O pesquisador e antropólogo Frans Moonen e o historiador e pesquisador Rodrigo Teixeira relata em uma série de publicações vários desses episódios extremamente violentos, que ficaram conhecidos como “As Correrias Ciganas”.

As correrias ciganas consistiam em as polícias invadirem os acampamentos matando indistintamente mulheres, crianças, idosos e adultos. A ação provocava a fuga em desespero dos sobreviventes, que se embrenhavam em matas e florestas, largando bens e pertences que conseguiam acumular, como cavalos, tralhas de arreios, panelas, roupas e enxovais, alimentos, entre outros, que eram apropriados pelas polícias.

Esses episódios ocorreram com mais força até a década de 70, mas ainda continuam a ocorrer hoje de forma esporádica. As populações ciganas têm medo das polícias e há um ranço histórico de desconfiança, aliado a um imaginário preconceituoso, estereotipado e racista por parte destas corporações. Um exemplo foi um caso que ocorreu em Vitória da Conquista, no Estado da Bahia, em junho de 2021.

A partir de um confronto entre a polícia militar (PM) e uma família cigana composta por 10 irmãos, que resultou na morte inicial de dois policiais e dois ciganos, a instituição passou a caçar os irmãos em fuga, promovendo um verdadeiro terror com várias pessoas e comunidades romani do município e da região, que não tinham qualquer envolvimento com o caso. As ações incluíram invasão e queima de casas e carros, bem como espancamentos e torturas inclusive a mulheres idosas e grávidas.

Luta antiracista

Mas não é apenas o estado brasileiro que praticou essas políticas persecutórias e racistas contra as pessoas romani. A própria população brasileira tem uma visão bastante estereotipada e equivocada das pessoas ciganas, que permeia um imaginário sociocultural herdado do imaginário português. É uma ótica que nos enxerga oscilando entre a romantização ou a negativação total, que inclui, ora nos ver como espíritos livres com belas mulheres que cavalgam errando pelos sertões, sem qualquer compromisso social; ora como bandidos perigosos, sequestradores, ladrões e trapaceiros, sujos e maltrapilhos, que precisam ser eliminados ou urgentemente civilizados.

Diferente de toda essa construção social histórica, nós temos nossos valores, tradições e costumes, que se conservaram como culturas e identidades de resistência, não apenas no Brasil, como em Portugal e todos os países europeus, que praticaram políticas semelhantes. Em Terras Tupiniquins a partir da Constituição federal de 1988 e a redemocratização, o estado brasileiro passou a olhar-nos de outras formas, propondo algumas poucas iniciativas e políticas afirmativas.

Enquanto identidades tradicionais, também começamos a nos articular, fundando a partir deste período um movimento cigano nacional, que vem se construindo com representações e demandas de reconhecimento e de políticas afirmativas em todas as áreas, incluindo educação, saúde, segurança, trabalho, previdência social, cultura, esporte e lazer. Cobramos a cidadania e a inclusão social, que historicamente nos foi negada. E conseguimos nesses 34 anos de Constituição Federal avanços importantes, que incluem uma data em que se comemora o Dia Nacional dos Ciganos (24 de maio), aprovada em 2006.

Povos Ciganos: Povos Tradicionais

Os imãos Rodrigues Cunha: Ranulfo, Juvenil, Albano, Araxides, Alvone, Estroécio, Lourival e Anésio: pilares da comunidade cigana mato-grossense.

No ano de 2007, o governo brasileiro, nos reconheceu, por meio do Decreto 6040, como povos e comunidades tradicionais (PCTs), nos incluindo ao lado de outros mais de 24 PCTs, como indígenas, quilombolas, rezadeiras, quebradeiras de coco, retireiros do Araguaia, pantaneiros, morroquinos, entre outros. Em 2011, o Ministério da Saúde publica a Portaria 940 de 2011, reconhecendo a especificidade do nomadismo cigano, permitindo que o atendimento nos serviços do SUS aconteça sem a exigência do comprovante de endereço, como ocorre com as populações fixas.

Também no âmbito da saúde, em 28 de dezembro de 2018, o Ministério da Saúde publicou a portaria 4.384, que criou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani. Esta política, reconhecendo as especificidades dos grupos e etnias ciganas, estabelece várias ações para que os três entes do SUS, governos federal, estadual e municipal, implementem visando este melhor atendimento. Além disso, acabou de ser aprovado no senado federal projeto de lei 248/2015, de autoria do senador Paulo Paim, que cria o Estatuto dos Povos Ciganos. A política traz garantias de políticas públicas e afirmativas em todos os setores e serviços cidadãos e deve agora ser apreciada na Câmara dos Deputados.

Infelizmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) não nos contabiliza no censo nacional. Mas estimativas do governo federal indicam que somos aproximadamente 500 mil pessoas, vivendo em todos os Estados brasileiros. Temos no país grupos ciganos dos três principais troncos étnicos, pela ordem de número e antiguidade: os Calon, os Rom e os Sinti, que se subdividem em outros inúmeros subgrupos.

Guardamos valores filosofias de vida, que contrapõem o estilo de vida capitalista e ocidental. Um exemplo é o modo como colocamos os seres humanos e a natureza acima do dinheiro e dos bens materiais. Outro é o modo como continuamos a ver a humanidade como parte integrante da natureza e, portanto, com uma sustentabilidade ambiental.

Claro que muito ainda precisa ser feito para que saíamos da exclusão e da desigualdade social, sendo reconhecidos como verdadeiros cidadãos. Mas estamos no caminho e mais unidos do que nunca. Tenho certeza que sim, vale a pena comemorar o dia nacional dos ciganos. Apenas uma data não muda muita coisa, mas é um momento para construirmos visibilidade e fazer a sociedade e o estado ouvirem as nossas vozes, demandas, valores e sensibilidades.

Viva os povos ciganos!

Aluízio de Azevedo, mestre e doutor pesquisando os povos ciganos, ativista e artista Calon, assessor para ciência e comunicação da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT) e Conselheiro Nacional de Igualdade Racial representando os povos ciganos.

 

 

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