“Minha mãe me pariu de pé, tanta pressa tinha eu de vir ao mundo”. A frase, da genial romancista Tereza Albues, é um dos primeiros impactos que temos ao assistir “Albuesas”, curta-metragem de Glória Albues, que terá estreia na próxima terça-feira (27.09), no teatro do Sesc Arsenal. Quando conheci Glória em 2007 – amiga querida e parceira de primeira hora, dada nossas afinidades, inclusive a ascendência cigana –, sua “mais que irmã, amiga de nascença”, a escritora e poeta, Tereza Albues, lamentavelmente, já não estava mais entre nós.
Com a mesma pressa com que veio ao mundo, também já o deixou (2005), no
auge de sua produção literária e reconhecimentos, vítima de um câncer. Embora
nunca tenha encontrado Tereza pessoalmente, posso dizer que a conheço bem pelas
memórias e narrativas de Glória, que sempre escutei com o maior carinho e
admiração. Agora tive a oportunidade de conhecê-la um pouco mais, pela
maneira sensível, delicada e poética em “Albuesas”, que mostra a ligação entre
as duas irmãs e, ao mesmo tempo, nos desperta uma imensa curiosidade para
conhecer mais a autora e suas obras.
A literatura de Tereza Albues é mato-grossense, brasileira e universal,
com obras que estão ambientadas em diferentes cenários e países. Entre elas, “A
Dança do Jaguar”, também lançada em versão impressa na próxima terça, cuja
história se passa toda ambientada em São Francisco, onde a autora viveu, ou “O
Berro do Cordeiro em Nova York”, obra que conecta dois mundos, sua terra natal,
o pantanal mato-grossense, onde foi “parida de pé”, à moderna Nova York, onde
viveu 25 anos e consolidou a carreira internacional, sendo homenageada como patrona
das Letras Brasileiras pela Brazilian Endowment for the Arts.
Apesar de todo esse talento, Tereza ainda é pouco conhecida do público
em geral, inclusive dentro de seu próprio Estado. Assim, com o filme, Glória
honra a memória da irmã e mantém vivo seu legado, imortalizando-a nas telas.
Mas atenção, Albuesas não é uma cinebiografia”, como a própria Glória faz
questão de ressaltar.
Trata-se de um filme arte, um ensaio leve e fresco, que vai desvendando
uma Tereza humana, vivaz e misteriosa. Em 20 minutos, o filme-ensaio adentra
não apenas o universo literário, trazendo várias reflexões inéditas de Tereza
Albues, como também enfoca seu universo existencial, especialmente, por suas
ligações íntimas e afetivas que fazia questão de manter com a sua terra natal.
“São duas realidades distintas, Mato Grosso e a cosmopolita Nova York, que se confrontam e convivem simultaneamente, quase que numa dimensão paralela, num discurso inacabado, misterioso e evocativo como a própria existência e que permite revelar momentos de incisiva reflexão em meio ao preconceito e as humilhações que pontuaram a vida da protagonista”, destaca Glória.
“As histórias podem não ter sentido, mas qual é o sentido do mundo?”
As histórias contadas por Tereza em seus livros, algumas delas tão
belamente trazidas por Glória em Albuesas, podem até não ter sentido, como a
própria autora descreve. Entretanto, o mundo, como ela mesma diz, também não
faz sentido e esse é o mistério da vida e da arte. “Tem muita tristeza, mas ao
mesmo tempo é assim um hino de amor, um hino de luta, porque eu sou uma mulher
guerreira, inclusive esse filme, esse filme não, ah tomara que dê filme, né?”
Como previu Tereza sua vida e obra, deu filme e dos bons! Aliás, se levarmos em conta toda a sua produção literária, que ainda guarda ineditamente sete obras completas, seus escritos dão muitos filmes. Em Albuesas, Glória constrói uma linguagem imagética muito próxima do surrealismo.
Em conjunto com
o olhar aguçado da direção de fotografia de Luzo Reis e do cineasta Murat Eyuboglu,
com o apoio da câmera de Felipe Albues, que aos nove anos já revelava seu
talento captando imagens da tia, como se pode ver no próprio filme, Glória
elabora um roteiro que prima pela construção de uma rede de afetos que
circundam a personagem (irmã, sobrinho, marido, cunhado e amigos), excluindo entrevistas,
textos laudatórios de personalidades, tão presentes em filmes dessa natureza. A
montagem aprimora esse contexto trazendo ao filme uma intimidade enternecedora.
Entre imagens de acervo pessoal e cenas capturadas no Pantanal e em Nova
York, a narrativa hibridiza a força da menina preta mato-grossense à brilhante
escritora cidadã do mundo e os seus locais de pertencimento, que oram saltam
aos olhos por meio de um caminhar furtivo e frio nas ruas congelantes de Nova
York e noutra navega nas gigantes asas da “Cabeça Seca”, garça que
sobrevoa as águas da Bahia de Chacororé, em pleno pantanal de Barão de Melgaço.
A inspirada trilha sonora original congrega e une algumas
realidades e sentimentos, que por vezes, parecem inconciliáveis, como o fogo no
pantanal, que remete ao preconceito intrafamiliar sofrido pela autora por ser
negra; ou a neve em Nova York, que nos traz a superação da vida acima dos
tempos fechados e tempestades.
Mesclando influências do jazz, blues e ritmos latino-americanos aos sons dos bichos do pantanal, especialmente, aves e a onça pintada, o trabalho é fruto de uma parceria entre os músicos sul mato-grossenses Lenilde Ramos (comadre de Tereza) e Anderson Rocha. A força literária dos escritos de Tereza, encontram ecos na comovente narração da atriz Fernanda Marimmon. E a sensível consultoria do cineasta Joel Pizzini acompanha a roteirista e diretora na intencionalidade de realizar um filme que ao fugir do didatismo, transgride a realidade dita objetiva e cria uma linguagem audiovisual intensamente poética , com evidente sucesso.
Tal como Tereza, que viaja “em direção ao infinito e pelo caminho vai recolhendo
pedaços de sonhos, em forma de contos e romances”; em Albuesas vamos navegando
na fluidez das águas pantaneiras ao encontro das águas do Hudson, ouvindo a sua
voz: “Eu me sinto liquefeita, escorro por todos os cantos de mim, sem pudor,
desaguando de sal, as lágrimas...”
Literatura - O livro e o filme integram o projeto
“Conexão Tereza Albues”, proposto pela editora da Entrelinhas, Maria
Teresa Carrión Carracedo, em que ao lado de outras 70 personalidades, Teresa
foi reconhecida como Mestra da Cultura Mato-grossense, por meio do edital
Conexão Mestres da Cultura, da Lei Aldir Blanc da Secretaria de Estado de
Cultura, Esportes e Lazer de Mato Grosso (Secel-MT).
Natural de Várzea Grande (MT), foi em Nova York, que Tereza escreveu
toda sua obra, que será reeditada pela editora Entrelinhas, inclusive vários
livros ainda inéditos. A Dança do Jaguar, por exemplo, foi lançado somente em
formato digital, no Salão do Livro de Paris, em 2002 e agora será publicado em
formato impresso.
Em 2020, a Editora Entrelinhas já havia lançado quatro de suas obras,
Pedra Canga, Chapada da Palma Roxa, “Travessia dos Sempre Vivos” e O Berro do
Cordeiro em Nova York, em edição no formato box, cada um dos livros com a capa
assinada por um artista plástico de MT, como era o desejo da autora.
Graduada em Direito, Letras e Jornalismo pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), a escritora tem reconhecimentos importantes, como do
editor Ênio Silveira, que publicou seus primeiros livros: "- Tereza tanto pode
ser vista como escritora quanto uma força da natureza, por sua prosa de ficção
ser tão rica e surpreendente”. Já para o diretor de teatro e ópera Gerald
Thomas, “Tereza é uma escritora fenomenal”, “é um terremoto literário”.
Em A Dança do Jaguar, o leitor acompanha uma trama de mistério, suspense
e sensualidade ambientada em São Francisco, na Califórnia. A jovem pintora
Nayla Malloney aluga um espaço no Solar Maltesa, casa vitoriana de três
andares, que aos poucos tem sua história sombria e sinistra revelada. Dividindo
o lugar com o excêntrico e recluso botânico Tristan O’Hara, Nayla embarca em
uma jornada repleta de aparições, sonhos e pressentimentos.
Serviço
O que: lançamento do filme Albuesas e do livro A Dança do Jaguar
Quando: terça-feira (27 de outubro de 2022)
Onde: Teatro do Sesc Arsenal, em Cuiabá
Horário: 19h
Por Aluízio de Azevedo