Autor de 'A Terra Dá, a Terra Quer' afirma não ver diferenças entre Lula e Bolsonaro quando o assunto é mineração em terras de quilombos
Da Folha de SÃO PAULO
Colonizar um povo é como
adestrar um boi. Ambas ações consistem na remoção da identidade, mudança de
território e condenação do modo de vida alheio. Essa é a associação que Antônio
Bispo dos Santos, também conhecido como Nêgo Bispo, faz em "A Terra Dá, a
Terra Quer".
Lançado nesta segunda (29), o
livro desmancha conceitos como ecologia, desenvolvimento e decolonialidade —a contraposição ao
pensamento de perspectiva colonialista e eurocêntrica.
O autor propõe o que chama de
contracolonialismo, que seria a recusa de um povo à colonização, o que, segundo
ele, é praticado há séculos por africanos, indígenas e quilombolas.
Nascido na comunidade Saco do Curtume, no
Piauí, Bispo ganhou notoriedade em movimentos sociais, na década de 1990,
quando chegou a se filiar a partidos políticos, que abandonou anos depois.
Desde então, se voltou para a defesa dos povos quilombolas.
Nesta entrevista, o autor comenta conceitos do novo
livro, a polarização
política no país, a relação do presidente Lula (PT) com os quilombos
e programas como Minha
Casa, Minha Vida.
Em
"A Terra Dá, a Terra Quer", o sr. critica o colonialismo e se opõe à
chamada decolonialidade, termo cada vez mais usado em contraposição ao
pensamento colonial. Em vez disso, fala em contracolonialismo. Por quê? Só
pode ser decolonizado quem foi colonizado. Qualquer pessoa que se sinta
colonizada pode lutar para ser um decolonial.
Mas decolonialidade é uma teoria,
não trajetória. Nunca existiu um movimento decolonial que tenha atuado de forma
resolutiva em prol de um povo. O contracolonialismo é diferente. Os quilombos
não foram colonizados.
O povo da academia que se diz progressista e só lê autores europeus, sim,
precisa se decolonizar.
O
sr. também diz preferir usar ‘colonialismo’ a ‘racismo’. É bom discutir racismo, mas ele é apenas um dos elementos
colonialistas. Quando se fala em racismo, habitualmente as pessoas pensam na
sociedade eurocristã. O colonialismo vai além disso. É para todas as vidas
existentes.
Como
combater o colonialismo? Não
queremos matar os colonialistas. Por isso, falo ‘contracolonialismo’. É uma
fronteira que estamos estabelecendo entre nós e a sociedade eurocristã
monoteísta.
[O extinto
quilombo dos] Palmares poderia
ter destruído o Recife, mas não devemos destruir nada. Nossa proposta é dizer:
'Vivam do jeito de vocês e viveremos do nosso, mas, se porventura, perceberem
que o nosso é bom, nos deixem ensinar'.
Além do
contracolonialismo, o sr. destrincha o conceito de cosmofobia, que seria uma
desconexão entre a humanidade e a natureza. Se opondo a essa lógica, diz,
então, que não é humano, mas sim, quilombola. Em termos práticos, o que quer
dizer? O povo eurocristão
monoteísta tem medo do próprio Deus, da natureza, do cosmo. É tanto medo que
tem dificuldade de se relacionar com rios, terra, vento —daí a palavra
‘cosmofobia’.
Em Gênesis, quando Adão e Eva
estavam no caminho do Éden, interagiam com tudo, não precisavam trabalhar, se
submeter a uma ordem externa. Mas Deus humaniza eles, cria o terror e diz que a
terra será maldita porque comeram o fruto proibido. É a Bíblia que cria os
seres humanos —e quem está fora dela é selvagem.
Nós, quilombolas, convivemos em
harmonia com as demais vidas. Os quilombos são lugares de relacionamentos. As
cidades, de civilizações. Precisamos animalizar a humanidade e desumanizar a
animalidade.
Como
assim? Só os humanos usam a
linguagem escrita. Nós, outros seres, nos comunicamos de outras formas,
inclusive sonora. Passamos a vida ouvindo esse povo das escrituras dizer que
não sabemos ler. Ora, os humanos não sabem falar.
Ainda
nessa linha de escrita versus oralidade, o sr. diz que em comunidades
quilombolas as histórias são passadas de boca em boca, sem nenhuma monetização.
Por que decidiu se tornar escritor? Não
sou escritor. Sou uma pessoa que escreve para estabelecer uma fronteira entre
os saberes. Sou um lavrador que também lavra palavras.
Quando a escola escrita chegou à
nossa comunidade, no fim dos anos 1960, nosso povo se recusou a participar, mas
ao ver que perderia tudo se continuasse assim, colocou as crianças para estudar
a linguagem das escrituras. Entrei na escola para isso.
Me tornei um tradutor da
comunidade. Não vou negar que sei falar e escrever muito bem. Mas decidi
escrever somente três livros [dois foram lançados] porque sou mesmo da
oralidade.
Ao
traçar uma relação entre favelas e quilombos, o sr. critica programas como o
Minha Casa, Minha Vida e o antigo Fome Zero, os classificando como
colonialistas. Não há nada neles para elogiar? Nada é apenas bom ou apenas ruim. O problema desses
programas é que tiram das pessoas o direito de arquitetar, compor e plantar o
que querem. Claro, melhor ter Fome Zero do que deixar morrer de fome. É melhor
ter o Minha Casa, Minha Vida do que ficar na rua. Mas não são coisas para
festejar. São para escapar.
O Minha Casa, Minha Vida tirou a
laje das favelas. As casas são pequenas, não têm quintal. As pessoas ficaram
confinadas, sem festa.
No Piauí, o Fome Zero foi
lançado em Guaribas [município que, na época, era considerado um dos mais
pobres do país]. Nunca houve debate com as pessoas de lá. Falavam que ali era
pobre porque não tinha nem restaurante nem hotel, mas gente rica não precisa
disso.
O
sr. também critica alguns discursos ambientalistas. O que o levou a isso? Tem muito ambientalista que vive nas cidades mas quer
consertar a floresta. É engraçado. As cidades estão alagadas, cheias de lixo,
mas querem mexer onde não sabem viver.
O
livro traz a ideia de que, na prática, não há diferença entre gestão de
esquerda e de direita. Nos últimos anos, o Brasil entrou numa crescente
polarização política. Como analisa isso? A direita e a esquerda são maquinistas que dirigem o
mesmo trem colonialista. Escolher o vagão permite decidir os passageiros com
quem você vai viajar. Mas a viagem é a mesma, vai para o mesmo caminho.
É preciso uma mudança estrutural.
Cabe a nós, quilombolas e indígenas, extrair tudo o que pudermos deste Estado
para criar nossas próprias estruturas.
Lula não fez reforma agrária
favorável aos agricultores familiares porque não teve coragem. Fez reforma
agrária para o agronegócio. Ele diz que acabou com a fome do povo e fará isso
de novo. Ora, o que acabou, acabou. Se voltou é porque não acabou.
E quanto à gestão
Bolsonaro? Não tive a oportunidade de
extrair tanto dele, mas pude conhecer melhor o Estado e certas pessoas. Foi um
governo sem máscaras, literalmente —nem contra Covid nem política.
Também serviu para quebrar
alguns intermediários. Tinham setores da esquerda que nunca protagonizavam a
própria vida mas queriam mexer na nossa.
Para nós, quilombolas, foi o
momento de preparar nossas defesas e refletir. Agora, ninguém trata Lula igual
das outras vezes.
Há semelhanças entre Lula e
Bolsonaro? Qual a diferença entre Bolsonaro
e um governo que autoriza a mineração em território quilombola sem cumprir os
protocolos da Convenção 169? Do ponto de vista da mineração, não há diferença.
Quem manda são as mineradoras.
O que quero dizer é que, sim,
Bolsonaro e Lula são diferentes, mas essas diferenças não são tão favoráveis.
O que Lula fez para o povo
quilombola? Criou o quê? Qual é o nosso espaço de poder dentro deste governo?
Pergunto porque é dos amigos que a gente deve cobrar o melhor acolhimento.
Apesar de hoje dizer que direita
e esquerda caminham juntas para o mesmo destino, o sr. já foi filiado ao PSB e
ao PT, considerados de esquerda. O que fez se desvincular desse meio? Atuei em movimento sindical, partido e
movimentos sociais por um bom tempo. Ao contrário da minha criação, me deparei
com um conhecimento todo escriturado. Tentaram me convencer de que a sociedade
era composta por duas classes, a trabalhadora e a patronal. Eu nasci e me criei
na roça, numa comunidade quilombola. Como lavrador, nunca fui ou tive patrão.
Também diziam que os quilombos
são formados por povos que fugiram da escravidão. Isso é muito pouco. [Na época
da escravidão] Você podia fugir e aceitar trabalhar na condição dos colonos,
mas não foi o que aconteceu com os quilombolas. Os quilombos continuam
resistindo ao sistema como um todo.
Desde então, qual sua relação
com a política? A última vez que votei foi em
1996, e em 1998, me desvinculei do movimento sindical. Hoje participo de uma
mobilização para estruturamos a nossa comunidade. Essa é a nossa grande luta de
defes
RAIO-X | ANTÔNIO BISPO DOS
SANTOS, 63
É membro da comunidade Saco do Curtume, no Piauí, onde atua em defesa dos povos
quilombolas. Seus livros lançados são "Colonização, Quilombos, Modos e
Significações" e "A Terra Dá, a Terra Quer".
A TERRA DÁ, A TERRA QUER
- Preço R$ 49,41 (112 págs.)
- Autoria Antônio Bispo dos Santos
- Editora Ubu; Piseagram
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