Guardiãs
da sabedoria cultural, as mulheres romani/ciganas lutam para que as próprias
narrativas sejam contadas e mantidas de pé junto ao Cerrado.
Do Site Favela em Pauta
Texto Ludmila Almeida
No
Brasil, há mais de 400 anos, os romani, também conhecidos como ciganos,
representam um dos povos tradicionais formadores da sociedade brasileira. Uma
cultura e percepção de mundo milenar, que encontra no Cerrado a sua
continuidade histórica. São mulheres sábias, pesquisadoras, artistas, advogadas
e defensoras de direitos humanos que lutam pelo direito à existência frente à
ignorância do Estado brasileiro, que não concretiza políticas públicas efetivas
que combatam a violência tanto ao modo de ser romani/cigano, quanto do direito
de ser mulher.
Apesar
da Constituição de 1988 e o Decreto n° 6.040/2007, de Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, estabelecerem
o reconhecimento dessas comunidades e instaurar o direito à manifestação
cultural, o acesso à educação, à saúde, à proteção ao modos de criar, fazer e
viver, ainda é desafio diário frente a invisibilidade enquanto cidadãos de
direito. Isso se espelha com a carência de dados atualizados sobre essa
população, de forma que no censo de 2010 o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) não os considerou enquanto um povo. Foi apenas em 2011 que o
IBGE começou a mapear os acampamentos que existiam no Brasil e em 2013 publicou
um número aproximado de 500 mil romani/ciganos no país.
Atualmente,
a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção de Igualdade Racial
(Seppir/MMFDH) estima que a população
romani/cigana seja por volta de 1 milhão de pessoas localizadas em todo o
Brasil. Eles são constituídos por três grandes etnias: os
Calon, os Rom e os Sinti, e cada uma é constituída por línguas, culturas,
costumes e trajetórias diferentes.
No final do
século XVI os primeiros romani/ciganos chegaram ao Brasil deportados pela
política segregacionistas de Portugal que os viam como ameaça à civilização e o
modo de ser europeu. A etnia Calon, a maior no Brasil, foi a que primeiro
chegou e se espalhou pelos estados. Anos mais tarde, fugindo da guerras e do
nazismo, a etnia Rom (vindos da Romênia, Turquia e Grécia a partir do século
XIX) e Sinti (vindos da Alemanha, Itália e França a partir do século XIX)
buscaram refúgio no país.
Transitando
à procura de território e sendo expulsos de vários lugares, os romani/ciganos
ainda são atingidos pelo preconceito e estereótipos. Histórias difundidas tanto
como forma de retirar a importância da pluralidade cultural desse povo, quanto
de reconhecer que são pessoas que também constroem esse país todos os dias.
Somente em 2015, o Governo Federal cedeu a primeira terra à comunidade cigana,
o local é chamado de “Terra Prometida”, um acampamento localizado no Distrito
Federal que ainda demanda de uma infraestrutura básica para se viver com
dignidade.
A
autopreservação contra a imposição cultural guia a resistência desses povos do
Cerrado. O direito de promover a percepção de mundo enquanto romani/cigano
passa pela garantia do acesso à terra e ao território, seja de forma
itinerante, semi-itinerante ou sedentária. Assegurar isso é possibilitar que as mulheres desses
povos continuem promovendo os saberes ancestrais e as experiências de vida que
partem do chão cerradeiro e são sustentados por ele.
Sabedoria milenar
mantida no e pelo Cerrado
Um
dos legados mantido pelas mulheres é a força das plantas medicinais que
encontra no Cerrado uma gama de possibilidades para enriquecer esse
conhecimento. Pelas mãos das romani/ciganas, as narrativas de seu povo são
ensinadas e perpetuadas. A natureza se transforma não só em saúde ao corpo
físico, mas, principalmente, em saúde cultural, isto é, no fortalecimento da
comunidade para viver e sonhar novos futuros.
Integrante
permanente do conselho de anciãos da etnia Calon e membra fundadora da
Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), Maria Divina
Cabral, mais conhecida como Dona Diva, é mestra da cultura mato-grossense,
raizeira e benzedeira. Sua sabedoria, a partir da filosofia Calon, já ganhou
destaque em documentários e pesquisas, e a torna uma referência nacional sobre
um dos povos que constituem a história do Brasil. Além de aconselhamento entre
os seus familiares, é uma guardiã dos conhecimentos referentes aos aspectos
simbólicos que marcam os Calon, como as leis do casamento, do luto e do
funeral.
“Eu tenho prazer em curar muitas pessoas. A floresta pra mim é
tudo, é minha medicina. A terra pra mim é alegria, significa muito
pra mim, fazer plantação, colher, é tudo na vida, a gente vem da terra e volta
pra terra”, conta a mestra que honra o legado sobre a terra e a cura que foram
aprendidas com a avó, Maria Madalena de Jesus, e depois da mãe Maria de Lurdes
Rodrigues.
“Garrafadas
para útero, para ovários, para os rins, pulmões, banho para mal de simioto
(doença do verme na pele), para mulher com infecção, para engravidar, para não
engravidar”, descreve alguns dos tratamentos, e contínua sobre algumas, das
várias, plantas que utiliza: “algodãozinho, barbatimão, cancerosa, aguniada, a
cuiabana, que todo mundo não conhece, tem o piãozinho, a infalível, erva moura,
garco velho, a pinha dos rins”.
Atualmente,
com residência em Rondonópolis – Mato Grosso, a mestra é a ministrante do
projeto “Diva e as Calins de Mato Grosso: ontem, hoje e amanhã”, que venceu o
edital Conexão Mestres da Cultura da Lei Aldir Blanc. “Calin” é como a mulher
Calon é nomeada na comunidade. O projeto, que já tem dois anos, é constituído
pelas filhas e netas de Dona Diva e se consolida com a promoção da roda de
diálogo “Princípios Introdutórios à Medicina Tradicional Cigana”, a produção do
etno documentário chamado “Diva e as Calins”, a exposição
virtual multimídia “Calin” e a roda de diálogo “Rememorando a
Chibe”. Também chamada de romanon ou romanó-kaló, Chibe é o modo como os
ciganos brasileiros da etnia calon denominam sua língua, da qual a anciã possui
um vasto conhecimento.
O
projeto ainda contribui para romper com a ignorância cultural e perpetuar os
saberes ancestrais. “Eu fiquei muito feliz por ela [a mestra], porque é um
momento que nós não poderíamos proporcionar. E ela já ajudou bastante as
pessoas com seus remédios, banhos em crianças e tantas outras coisas. Muitas
pessoas que não conhecem viram a cara, não entendem, e acredito que tendo
esse reconhecimento as pessoas possam mudar o conceito sobre a nossa cultura”,
relata Leidiane Alves, participante do projeto e uma das netas de Dona Diva, a
respeito da importância do reconhecimento da mestra pelo Estado e do quanto
isso contribui para que a sociedade conheça a verdadeira história dos povos
romani.
“Eu tenho muito
orgulho da minha origem de ser cigana. Ser cigana é igual ser como você, só que
muda o astral, a vida”. afirma
a mestra.
Como
uma árvore do Cerrado, Dona Diva foi e é resistente e resiliente aos
enfrentamentos que precisou vivenciar enquanto mulher romani/cigana, e devido a
suas raízes profundas, nunca se deixou apagar o conhecimento de seu povo. Uma
riqueza evidente a cada vez que ela acessa as águas de saberes cultivados há
séculos.
Guardiãs da sabedoria cultural, as mulheres romani/ciganas lutam
para que as próprias narrativas sejam contadas e mantidas de pé junto ao
Cerrado.
No Brasil,
há mais de 400 anos, os romani, também conhecidos como ciganos, representam um
dos povos tradicionais formadores da sociedade brasileira. Uma cultura e
percepção de mundo milenar, que encontra no Cerrado a sua continuidade
histórica. São mulheres sábias, pesquisadoras, artistas, advogadas e defensoras
de direitos humanos que lutam pelo direito à existência frente à ignorância do
Estado brasileiro, que não concretiza políticas públicas efetivas que combatam
a violência tanto ao modo de ser romani/cigano, quanto do direito de ser
mulher.
Apesar da
Constituição de 1988 e o Decreto n° 6.040/2007, de Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, estabelecerem
o reconhecimento dessas comunidades e instaurar o direito à manifestação
cultural, o acesso à educação, à saúde, à proteção ao modos de criar, fazer e
viver, ainda é desafio diário frente a invisibilidade enquanto cidadãos de
direito. Isso se espelha com a carência de dados atualizados sobre essa
população, de forma que no censo de 2010 o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) não os considerou enquanto um povo. Foi apenas em 2011 que o
IBGE começou a mapear os acampamentos que existiam no Brasil e em 2013 publicou
um número aproximado de 500 mil romani/ciganos no país.
Atualmente,
a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção de Igualdade Racial
(Seppir/MMFDH) estima que a população
romani/cigana seja por volta de 1 milhão de pessoas localizadas em todo o
Brasil. Eles são constituídos por três grandes etnias: os
Calon, os Rom e os Sinti, e cada uma é constituída por línguas, culturas,
costumes e trajetórias diferentes.
No final do
século XVI os primeiros romani/ciganos chegaram ao Brasil deportados pela
política segregacionistas de Portugal que os viam como ameaça à civilização e o
modo de ser europeu. A etnia Calon, a maior no Brasil, foi a que primeiro
chegou e se espalhou pelos estados. Anos mais tarde, fugindo da guerras e do
nazismo, a etnia Rom (vindos da Romênia, Turquia e Grécia a partir do século
XIX) e Sinti (vindos da Alemanha, Itália e França a partir do século XIX)
buscaram refúgio no país.
Transitando
à procura de território e sendo expulsos de vários lugares, os romani/ciganos
ainda são atingidos pelo preconceito e estereótipos. Histórias difundidas tanto
como forma de retirar a importância da pluralidade cultural desse povo, quanto
de reconhecer que são pessoas que também constroem esse país todos os dias.
Somente em 2015, o Governo Federal cedeu a primeira terra à comunidade cigana,
o local é chamado de “Terra Prometida”, um acampamento localizado no Distrito
Federal que ainda demanda de uma infraestrutura básica para se viver com
dignidade.
A
autopreservação contra a imposição cultural guia a resistência desses povos do
Cerrado. O direito de promover a percepção de mundo enquanto romani/cigano
passa pela garantia do acesso à terra e ao território, seja de forma
itinerante, semi-itinerante ou sedentária. Assegurar isso é possibilitar que as mulheres desses
povos continuem promovendo os saberes ancestrais e as experiências de vida que
partem do chão cerradeiro e são sustentados por ele.
Sabedoria milenar mantida
no e pelo Cerrado
Um
dos legados mantido pelas mulheres é a força das plantas medicinais que
encontra no Cerrado uma gama de possibilidades para enriquecer esse
conhecimento. Pelas mãos das romani/ciganas, as narrativas de seu povo são
ensinadas e perpetuadas. A natureza se transforma não só em saúde ao corpo
físico, mas, principalmente, em saúde cultural, isto é, no fortalecimento da
comunidade para viver e sonhar novos futuros.
Projeto coordenado por Dona
Diva tem o objetivo de passar o saber para as próximas gerações. Foto: Karen
Ferreira.
Integrante
permanente do conselho de anciãos da etnia Calon e membra fundadora da
Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), Maria Divina
Cabral, mais conhecida como Dona Diva, é mestra da cultura mato-grossense,
raizeira e benzedeira. Sua sabedoria, a partir da filosofia Calon, já ganhou
destaque em documentários e pesquisas, e a torna uma referência nacional sobre
um dos povos que constituem a história do Brasil. Além de aconselhamento entre
os seus familiares, é uma guardiã dos conhecimentos referentes aos aspectos
simbólicos que marcam os Calon, como as leis do casamento, do luto e do funeral.
“Eu tenho prazer em curar muitas pessoas. A
floresta pra mim é tudo, é minha medicina. A terra pra mim é alegria,
significa muito pra mim, fazer plantação, colher, é tudo na vida, a gente vem
da terra e volta pra terra”, conta a mestra que honra o legado sobre a terra e
a cura que foram aprendidas com a avó, Maria Madalena de Jesus, e depois da mãe
Maria de Lurdes Rodrigues.
“Garrafadas
para útero, para ovários, para os rins, pulmões, banho para mal de simioto
(doença do verme na pele), para mulher com infecção, para engravidar, para não
engravidar”, descreve alguns dos tratamentos, e contínua sobre algumas, das várias,
plantas que utiliza: “algodãozinho, barbatimão, cancerosa, aguniada, a
cuiabana, que todo mundo não conhece, tem o piãozinho, a infalível, erva moura,
garco velho, a pinha dos rins”.
Atualmente,
com residência em Rondonópolis – Mato Grosso, a mestra é a ministrante do
projeto “Diva e as Calins de Mato Grosso: ontem, hoje e amanhã”, que venceu o
edital Conexão Mestres da Cultura da Lei Aldir Blanc. “Calin” é como a mulher
Calon é nomeada na comunidade. O projeto, que já tem dois anos, é constituído pelas
filhas e netas de Dona Diva e se consolida com a promoção da roda de diálogo
“Princípios Introdutórios à Medicina Tradicional Cigana”, a produção do etno
documentário chamado “Diva e as Calins”, a exposição
virtual multimídia “Calin” e a roda de diálogo “Rememorando a
Chibe”. Também chamada de romanon ou romanó-kaló, Chibe é o modo como os
ciganos brasileiros da etnia calon denominam sua língua, da qual a anciã possui
um vasto conhecimento.
O projeto
ainda contribui para romper com a ignorância cultural e perpetuar os saberes
ancestrais. “Eu fiquei muito feliz por ela [a mestra], porque é um momento que
nós não poderíamos proporcionar. E ela já ajudou bastante as pessoas com seus
remédios, banhos em crianças e tantas outras coisas. Muitas pessoas que não
conhecem viram a cara, não entendem, e acredito que tendo esse
reconhecimento as pessoas possam mudar o conceito sobre a nossa cultura”,
relata Leidiane Alves, participante do projeto e uma das netas de Dona Diva, a
respeito da importância do reconhecimento da mestra pelo Estado e do quanto
isso contribui para que a sociedade conheça a verdadeira história dos povos
romani.
“Eu tenho muito orgulho da minha origem de ser cigana.
Ser cigana é igual ser como você, só que muda o astral, a vida”. afirma a mestra.
Como uma
árvore do Cerrado, Dona Diva foi e é resistente e resiliente aos enfrentamentos
que precisou vivenciar enquanto mulher romani/cigana, e devido a suas raízes
profundas, nunca se deixou apagar o conhecimento de seu povo. Uma riqueza
evidente a cada vez que ela acessa as águas de saberes cultivados há
séculos. Ministra a oficina sobre plantas medicinais do
Cerrado. Foto: Karen Ferreira.
“O Cerrado é
tudo pra mim, tem todos os remédios que preciso. [Mas] desmatou muito e acabou muito com os remédios.
Antes se achava pelo ramo, aí com o desmatamento você vai ter que conhecer pelo
cheiro e pela raiz”, relata sobre a ameaça que o bioma sofre,
uma ameaça também aos saberes populares. A anciã, que muitas vezes precisa
andar longe em busca das plantas que já não se encontram mais tão perto, ainda
diz que caminhar pelo Cerrado é muito prazeroso, o ar é outro. A manutenção do
Cerrado é a garantia de saúde aos povos tradicionais.
Arte como veículo de
manutenção dos saberes
Após
pesquisar na América Latina e na Europa lendas sobre os romani/ciganos, Aline
Miklos do povo Rom, etnia Kalderash, e doutoranda em história da arte, se
deparou com narrativas que reforçam a rejeição e a violência. Como resposta e
protesto, decidiu contar outra narrativa a partir da música, uma arte que
aprendeu no dia a dia com os pais, desde criança e junto às festas da
comunidade. Aliás, entre outras contribuições, foram os povos romani/ciganos
que fundaram o Circo, a arte circense no país. São comunidades que sustentam a
circulação de percepções de mundo, tradições e pluralidades que compõem o que
se chama hoje de cultura brasileira.
Como cantora
e compositora, Aline integra a banda Kalo Chiriklo e lançou recentemente
o álbum musical “Pajaro Negro”. A artista usa a arte para contar a história em
primeira pessoa e combater os estereótipos difundidos pelo mundo. Além de ser
uma forma de expressar sua identidade, a arte para os povos romani/ciganos é
veículo de transmissão da história e das tradições.
As
pessoas da etnia Rom-Kalderash são conhecidas, historicamente, como as que
trabalham na transformação do metal e do cobre, e do império austro-húngaro, no
final do século XIX, quando vieram para o Brasil. A família de Aline chega pelo
Estado do Maranhão e ao longo dos anos foi descendo até Minas Gerais, depois
Bahia até chegar em Goiás onde estão desde a década de 50. O encontro de
culturas já está bem misturado, como a artista mesmo diz, tanto a culinária
goiana quanto as garrafadas com plantas do Cerrado fazem parte de sua
trajetória e de sua família.
“A gente não é folclore, a
gente não é mito, a gente existe”
Apesar
de tantos anos no país, esses povos ainda se deparam com o desrespeito, especialmente
a mulher. “Assim como qualquer mulher de outra etnia, ela sofre preconceito
duas vezes: uma por ser mulher e outra por ser romani. Muitas mulheres romani
sustentam suas casas através do trabalho de adivinhação e do trabalho de
leitura de mão, a sociedade dúvida muito porque é trabalho feminino, se fosse
masculino eu acredito muito que a sociedade, no geral, não iria duvidar tanto”,
diz a respeito do estereótipo de desconfiança ao qual muitas mulheres
romani/ciganas são lançadas.
Junto ao ato
de deportar esses povos para o Brasil, a Europa também projetou discursos
preconceituosos e racistas que tentam eliminar a riqueza e a forma de se
relacionar com o território. Essa violência ainda persegue esses povos em
diáspora a séculos pelo país, povos que são, muitas vezes, estereotipados, com
direitos humanos retirados e barrados ao bem viver, à vida digna e ao respeito
de sua diversidade.
As histórias
dos povos romani são passadas pela oralidade, tradições milenares que encontram
enfrentamentos históricos sobre o seu modo de viver e sua forma de se
organizar. E as mulheres foram e são fundamentais na manutenção desses saberes,
da memória e da transmissão de valores.
“Elas são educadoras por
excelência, porque é preciso ser. Para além do ser comunidade, é preciso ser
porque o Estado não cumpre o seu papel. A educação formal é
feita para povos sedentários, não se tem oportunidades para ciganos
itinerantes. Se cria burocracia para impedir que a gente esteja nesse espaço”. conta Sara Macêdo.
Criada em
meio às cavalgadas de Trindade e puxadoras de folia, Sara Macêdo vem de uma
família localizada, atualmente, em Pontalina, Goiás. Mulher romani, pertencente
a etnia Calón, o maior grupo romani no Brasil, a mestranda em direito agrário
pela Universidade Federal de Goiás (UFG), é ecossocialista, assessora jurídica
popular e integrante do Coletivo Ciganagens,
e vem para Goiânia em 2013 para estudar, mas o retorno ao campo já está em seus
planos. “Enquanto povo tradicional nesse Cerrado velho, eu tenho muito orgulho
de ser um dos povos que tenta barrar a extinção desse bioma e que tenta
prevalecer apesar das atribulações”.
Sara é integrante do Coletivo
Ciganagens que busca valorizar a riqueza cultural dos povos romani/ciganos.
Foto: Arquivo Pessoal.
“A gente não
é folclore, a gente não é mito, a gente existe”, pontua Sara sobre o quanto a
existência cultural de tais povos se encontra ameaçada e pautada em um processo
de desumanização que não os reconhece enquanto seres de direito. A garantia
tanto de transitar quanto de se fixar em um território é direito
constitucional. Porém, segundo a assessora jurídica, a construção das leis são
estruturadas de forma econômica, jurídica e psicológica para que a única forma
de viver no mundo seja a sedentária, aquela que aceite viver em casas pequenas,
sem contato com a natureza e com pessoas presas a uma rotina burocrática. “É nós por nós. O direito dos povos transitarem
pelo território deveria ser tão natural, tão simples, é o direito e a liberdade
de andar pelo nosso próprio territorio”, ressalta.
Pelo direito à terra e ao
andarilhar
Contra
a ideia de terra mercadoria e pelo direito de transitar, os povos ciganos se
constroem nos trânsitos, nas trocas, nas festas, no cuidado com a família. A
luta pelo acesso à terra é o direito de não se submeter ao projeto hegemônico,
que tenta a todo custo os enquadrar em uma caixinha de modo de ser e estar. “A perspectiva de se sedentarizar é imposta a
nós. Muitas comunidades andam e ficam muito tempo num lugar
porque ali tem mais qualidade de vida e andam com menos tempo em outro lugar
porque ali tem menos qualidade de vida. É o básico da existência”, pontua sobre
a falta de reconhecimento sobre as tradições dos povos romani/ciganos que não
são respeitados, mesmo estando na Constituição o direito à liberdade, à moradia
e do ir e vir.
“Não gosto
do termo nômade, porque é como se fosse algo de livre e espontânea vontade e,
na maioria das vezes, não. Os ciganos, na concepção popular, no imaginário
popular são vistos como filhos do vento, que a gente anda por esporte, que a
gente não gosta de ter casa e eu falo: olha quem que gosta de pagar aluguel? pagar energia? gosta de pagar
água para viver? A gente, enquanto povo tradicional, acredita que isso não é
normal”, diz Sara sobre as questões que dizem respeito ao
básico para se viver, como casa, terra, educação, saúde, que deveriam ser
inerentes a qualquer sociedade e não espaços privados atrelados a apenas uma
forma de viver.
“O povo do Cerrado é esse povo que consegue se
transformar e viver de várias maneiras”.
Sara Macêdo
O ser
itinerante em busca de condições melhores de vida vai de encontro também à
busca pelo acesso à saúde pública, pois em muitos postos de saúde ainda é
exigido comprovante de endereço e identidade, além da falta de um atendimento
que respeite a cultura de tais povos, o que atinge o direito à vida. “Todas as plataformas políticas criadas
para povos ciganos no país, vieram dos próprios povos ciganos”,
diz a assessora jurídica.
Aline
Miklos, da etnia Rom-Kalderash, complementa que o preconceito e perseguição
desabrigam esses povos, depois o Estado começa a nomeá-los como “nômades por
natureza” e os culpam pela própria precariedade de vida.
Além disso,
são pessoas que realizam trabalhos que precisam viajar muito para fechar
vendas. “Inclusive minha família viajava acompanhando as festas populares, mas
sempre tinham casa em algum lugar e voltavam. Então, eu não chamo isso de nomadismo, eu chamo isso
de trabalho itinerante”, destaca.
A efetivação dos direitos é preocupante, mesmo com a aprovação tardia da portaria 4.348, de 28 de dezembro de 2018, da
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani. Ainda
tramita também no Senado Federal brasileiro o Projeto de Lei 248/2015 que
propõe o chamado “Estatuto do Cigano” que visa garantir a partir de regime jurídico
específico os direitos fundamentais dos povos romani, especialmente os
relacionados à educação, à cultura, à saúde, ao acesso à terra, à moradia, ao
trabalho e à promoção da igualdade.
Povos do Cerrado e o
direito de permanecer no Cerrado
Reconhecer a
diversidade dos povos e comunidades tradicionais do Cerrado é reconhecer outras
relações com a terra-território. Nisso, a importância de se preservar os ritos
e as espiritualidades é parte da manutenção cultural que carece de proteção por
parte de políticas públicas. Isso é necessário para que tais saberes não sejam
apagados, como a própria história do Brasil já realiza ao nem mesmo mencionar
esses povos e comunidades tradicionais na história oficial, povos tão antigos
quanto o próprio Brasil.
“Precisa-se criar uma conscientização de que o nosso modo de vida
não é errado, mas sim de uma riqueza enorme. Temos nossos cantos, nossa própria
língua, diversas espiritualidades”, diz Sara sobre o anticiganismo e a violência
etnico-racial contra os romani/ciganos. “O território para os romani está sempre relacionado a comunidade e
a família. Geralmente eles transitam onde eles têm família e
isso é fundamental, é muito importante. A comunidade e o território são duas
coisas importantes”, relata Aline Mikos sobre o território não só ser uma
morada, mas também a força que faz permanecer viva o modo de ser romani/cigano.
“Ser
uma mulher cigana, de comunidades seminômades, semi andarilhas, que estão em
transição, transacionar, principalmente em Goiás, é uma dificuldade muito
grande. A gente tem a questão da propriedade da terra e da posse da terra aqui
de uma maneira que não possibilita esse andarilhar, essa possibilidade de
transitar nos territórios. Acho que isso, na verdade, não é igual para todas as
pessoas, porque as mais ricas têm direito ao território e as pessoas mais
pobres não. Essas têm que lutar bastante por aquele espaço em que ela está,
mesmo se ela está ali durante muito tempo”, analisa Sara sobre a ideia de
domínio da terra e a urgência de se ter espaços que tanto acolham os povos
itinerantes, quanto políticas que possibilitem o direito à terra.
A
pesquisadora ainda conta que seus avós trabalharam por muito tempo em cafezais
no sul de Goiás e afirma que a pior questão do país é o agronegócio nesses
espaços, especialmente, no que diz respeito ao trabalho escravo. Hoje vivem em
Pontalina, Goiás, e apesar de ter acesso à terra vivem cercados de monoculturas
que envenenam o solo, as águas e provoca a falta de chuvas.
“A terra é
poder, é subsistência. E foi uma estratégia muito grande da hegemonia criar uma
sociedade, no geral, de maioria na cidade. Porque um povo que não decide o que
come, que tem que depender de um supermercado caro, com as coisas cheio de
veneno para comer, é um povo que não tem poder de nada”.
afirma
sobre a construção histórica do “êxodo rural”, que foi e é uma forma de
expulsar as pessoas do campo e encurralá-las na cidade sob o controle do
Estado.
“A
terra é espírito, a terra tem poder, é onde a gente enterra nossos ancestrais,
nos dá de comer, onde montamos nossas barracas, montamos nossas casas, onde a
gente cria raízes, é onde tem rio que dá o peixe pra gente comer”. Sara
ressalta que essa reverência à terra também se encontra no respeito aos
ancestrais vivos, às anciãs e anciãos romani/ciganas, pois são eles que tem a
maior sabedoria e experiência sobre a tradição, são eles que dividem a herança,
às práticas de cura, passam os segredos espirituais aos mais novos como forma
de preservar o legado e sobreviver no mundo gadjo (não romani). Por isso, a
ideia de asilo para idosos não faz parte da concepção sociocultural deste povo,
que vê como um ato de abandono e desrespeito à memória.
Para
Sara, os povos do campo são todos povos tradicionais, porque estão segurando um
modo de existência que a cidade não segura. A pesquisadora acredita na formação
de uma frente ampla dos povos tradicionais na América Latina para trazer esse
país de volta.
“Na
medida que o Cerrado está bem, está vivo, nosso povo tradicional está bem e
está vivo”, finaliza.
Arte
em Destaque: Júlia Barbosa | Edição: Renato Silva.
Disponível em: https://favelaempauta.com/as-romani-ciganas-do-cerrado/?fbclid=IwAR0j4ysKGHKArJdYIJugfS6J5B4TsxILX2dmd8XHpdpUm6fwqS4PY_BsQls