A kalin Maria Divina
Cabral, de Rondonópolis é uma das raizeiras
mais antigas do Estado, conhecendo
uma grande variedade de plantas medicinais do cerrado.
Quem vê de longe a
pequena casa “meia água” de três cômodos, não imagina que um lugar tão simples
é o lar de uma família cigana kalon, que conserva inúmeros saberes. Práticas e
narrativas históricas, que foram acumuladas ao longo de séculos de nomadismo e
contato, primeiro com povos orientais e africanos e depois com nações europeias
e povos americanos. Nessa modesta residência, que fica na Rua um, da Vila
Poroxo, Rondonópolis (a 210 km de Cuiabá), mora há cerca de 45 anos a raizeira
e benzedeira kalin, Maria Divina Cabral, de 65 anos e seu marido-primo, Jair
Alves Cabral, 67.
Foi ali, que ao chegar em
Rondonópolis há cerca de 45 anos atrás, abarracou com a família dos pais, construiu
sua casa, casou, criou as duas filhas Cleide e Selma, a neta Jéssika e ajuda a
cuidar e dar carinho às três netas: Leidiane, Cristiane e Suiani. É nesse mesmo
espaço, em outra casa também “meia-água” que viu o pai Lázaro Cigano viver os
últimos dias e é onde continua morando sua mãe, Lourdes, que próxima de
completar 80 anos, mantém as memórias do tempo de nomadismo e relata com
lucidez experiências boas e as dificuldades passadas “andando” pelos sertões,
vilarejos e pequenas cidades, entre Minas Gerais, onde nasceu e depois pelo
Estado de Goiás, até fixar residência.
“Hoje a vida morando tá
mais fácil. Temos água encanada, pia, chuveiro, luz elétrica, televisão e
outras coisas. Naquele tempo a gente
vivia acampando de um lado para o outro. Era bom, porque tinha liberdade,
conhecia muitos lugares, mas também era ruim, porque muitas vezes a gente
passava o dia inteiro andando de baixo de chuva e chegava a noite, precisava
parar para pousar e tinha fazendeiro que não queria dar o lugar pra gente
parar”, relembra dona Lourdes, salientando que tudo o que aprendeu da vida
cigana foi com os pais e os avós.
Raízes - Entre
os saberes romani, destaca-se a língua Romanó-Kaló ou “chibe”, que tem como base
o sânscrito e recebeu influência céltica, hebraica, árabe, espanhola e
portuguesa. Outra diferença é a estrutura familiar extensa, que viabiliza modos
de vida e organização social e cultural opostos ao estilo de vida ocidental, a
exemplo do modo como lidam com o processo de saúde-doença-cura, buscando
auxílio na utilização das plantas e seus derivados, como caules, raízes,
cascas, frutos, folhas e flores, para os cuidados e o equilíbrio corporal,
mental e espiritual. Práticas e conhecimentos que Diva e sua mãe Lourdes, mantêm
vivos, ajudando muita gente que procura por seus cuidados e conselhos.
A medicina tradicional
kalon tem sido desenvolvida, aplicada e mantida pelas mulheres ciganas,
especialmente, as de meia-idade e mais velhas. Entretanto, a atividade se
conservou ao longo dos anos de forma oral e repassada de geração em geração. Atualmente
com 65 anos, Diva salienta que aprendeu a cura pelas plantas ajudando sua mãe e
suas avós Maria e Jandica, três raizeiras e benzedeiras respeitadas entre
ciganos e não-ciganos, a buscar as ervas no cerrado. Ou ajudando-as a
prepará-las, um processo que envolve diferentes técnicas
e destreza, a depender do tipo da planta e doença a ser cuidada. Ela faz
questão de dar os remédios para as três bisnetas Cristina, Paula e Isabela.
“Tenho garrafada em casa
na minha geladeira, que eu tomo direto. E
a gente não toma remédio dos médicos, se tiver garrafada, porque muitos
remédios dos médicos intoxicam. Você toma para uma coisa e ataca outra, o
fígado, o estômago, ataca tudo. E esse aqui, não! É remédio original, ele vem
da floresta, você toma sem medo e pode tomar todos os dias e vai ver o bom efeito”,
enfatiza Diva, que também benze de quebranto e dá banho de malssimioto e verme
na carne, “doenças que os médicos não curam”.
E continua: “A planta
medicinal veio desde o começo do mundo. Não é só índio que entende de erva. Antigamente,
não tinha médico e o pessoal se tratava mais com raiz. Tinha na horta para dor
de barriga, para qualquer coisa. Hoje tem muitas coisas de doença que vem para
as pessoas pelo alimento, porque tudo que vai comer tem agrotóxico, química,
tomate, óleo... Você vive na base do veneno. Hoje, dificilmente, você achar uma
pessoa saudável, sadia. Só vê com doenças, rins, fígado, pele... mas a nossa
família segue a tradição da raiz e é difícil você ir em médico”.
Dona Maria de Lourdes Pereira, mãe de Diva, ensinou aprendeu a arte
da cura pelas ervas com a mãe Maria de Jesus e ensinou a filha a conhecer as plantas medicinais
Troncos – Pertencente
ao tronco étnico cigano kalon – os outros dois são Rom e Sinti –; a família de
Diva se ramifica por várias cidades de Mato Grosso, concentrando-se em
Rondonópolis, Tangará da Serra e Cuiabá. E é composta por cerca de 300 pessoas,
boa parte seus irmãos, cunhados, tios, sobrinhos e primos. Uma comunidade, que
assim como outras espalhadas pelo Brasil, guarda costumes ímpares, como relata
Diva, que nasceu em Mineiros (GO):
“Eu sinto muito orgulho
da nossa tradição. Vem de muitos anos. A gente viajava de tropa, acampava por
muitos lugares e muitas cidades. Matava porco, vaca... As nossas barracas
pareciam uma cidade e o povo de fora vinha para apreciar”. Conforme a raizeira,
mesmo sem um reconhecimento formal, a tradição cigana é sábia.
“Não tenho estudo, mas
tenho a sabedoria de Jesus na minha cabeça. Tudo que pertencer de remédio de
Kalon, de cigano, linguagem e tradição eu sei”, pondera, ao mesmo tempo em que
rebate um preconceito histórico de que ciganos são ladrões: “você não vê um
cigano preso porque matou, porque estuprou, roubou ou assou. Não tem nenhum,
você pode caçar, é muito difícil acontecer com cigano. E os gadjon (não ciganos) você vê, cada um
sair com a tornozeleira no pé. Onde você anda tem um. Eles querem ser melhores
e não são. Todas as nações são iguais”, enfatiza.
Frutos - Acompanhando
Diva e sua prima, Nilva Rodrigues Cunha, 60 anos, a um pequeno lote (em torno
de 400 m2) de cerrado na periferia de Rondonópolis, foi possível observá-las
fazer a recolha de mais de 20 espécies medicinais, como
mamia cadela, algodãozinho do campo, erva lagarta, carrapicinho, cabelo de
negro; chifre de carneiro; pinha do mato; nó de cachorro; erva moura; garco
velho; vergateza; carijó; batata do tiu; cuiabana; infalive; catuaba; butica
inteira; romã; batata roxa; peãozinho; salsa parrilha; capim verde; carapiá;
carobinha; algodão da índia, agoniada...
Essas
plantas podem ser utilizadas para diferentes enfermidades. Entre elas: dores de
cabeça, febres, enjoos, diarreias, renais, saúde sexual, impotência e
infertilidade masculina e feminina, abortivos, queimaduras e machucados,
reumatismo, sífilis e gonorreia, memória, pele, cabelo, contra picada de cobra,
entre outras. Mas exige um processo de manipulação com várias etapas que
envolve secagem, dosagem, misturas em água ou vinho e que, por vezes, é
acompanhado por rezas ou práticas ritualísticas próprias que misturam outros
materiais naturais, como mel, leite materno, ou argila.
Enfatizando que segue
“origem e a tradição da avó”, que fazia garrafada para as mulheres, as crianças,
que nunca foram em medicina, Nilva tem
certeza que “erva do mato é melhor que um remédio da medicina, porque o da
medicina contém muitas misturas e esse aqui vem da natureza puro!” E relata uma
cura de uma enfermidade que adquiriu logo após o nascimento e quase a levou a
óbito.
“Quando tinha uns seis
meses, fiquei internada com problema de bronquite, asma e fiquei só o couro e o
osso. Daí minha vó disse: ‘meu filho, tira sua filha daí, que ela vai morrer’.
E falou assim: “oh, vou fazer um remédio para ela com umas plantas do cerrado e
se ela aguentar, vai escapar”. Ela fez o remédio, eu tomei e aguentei, fui
teimosa, queria viver, sarei e hoje tô aqui essa mulherona forte e sadia. Não
fui em médico, não tenho problema e tudo através da planta medicinal. Se todo
brasileiro tivesse conhecimento da planta medicinal, jamais eles iam tomar
remédio de médico, feito de bioquímica”, sentencia.
Folhas – Importante
ressaltar que as comunidades ciganas não são homogêneas e os três grandes
troncos étnicos, os kalon, os rom e os sinti, se subdividem em inúmeros grupos;
que juntos somam cerca de 15 milhões de pessoas vivendo em todos os continentes
e países, o que nos torna muito diversos. Desde o século X, quando chegaram na
Europa, sofreram com sucessivas políticas persecutórias. A mais grave foi o
nazismo, que assassinou mais de 500 mil ciganos.
Em Portugal, onde estão
desde o século XIV, foram editadas leis que proibiam as pessoas ciganas de
andarem juntas, de falarem suas línguas, de exercerem suas profissões
tradicionais, enfim, de serem ciganos, sob pena de prisão, tortura, assassinato
ou degredo. Hoje a população cigana, cerca de 100 mil pessoas, é a minoria que
sofre mais preconceitos e está em situação de exclusão e desigualdade social no
país.
Foi através do degredo
português que os Kalon chegaram ao Brasil no primeiro século da colonização,
onde não existe registros oficiais, mas estima-se que sejam aproximadamente 500
mil pessoas, vivendo em todos os Estados. Registros históricos apontam para a
presença cigana fazendo comércio em terras tupiniquins já nos anos de 1530. Até
a independência do Brasil (1822), milhares de famílias ciganas foram para cá
degredadas. Junto com os portugueses veio o racismo contra as pessoas ciganas.
Segundo relatório da
Organização das Nações Unidas (ONU, 2016), “no Brasil, as famílias de ciganos
estão frequentemente em situação de extrema pobreza, sem acesso a eletricidade,
água potável e saneamento básico adequado”. E atualmente, os grupos ciganos
luta para melhorar suas condições de vida, serem integrados na sociedade
brasileira, mas sem perder suas especificidades étnicas.
Apesar desse histórico,
os grupos ciganos ajudaram a construir a identidade nacional de vários países,
inclusive o Brasil, exercendo uma forte influência na culinária e na música
popular brasileira, como o Samba e a música sertaneja. E resistem enquanto
culturas e identidades próprias distintas da cultura e identidade nacional.
Aluízio de Azevedo
Da Assessoria de Comunicação da AEEC-MT para o Jornal A Gazeta
Da Assessoria de Comunicação da AEEC-MT para o Jornal A Gazeta