terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Feminismo cigano: Existimos e resistimos! – Entrevista a Maria Gil

Cigana, atriz e portuguesa Maria Gil, ativista do movimento "Mulheres e Ciganas Existem e Resistem!"

Por HELENACARLAG

Combinei encontrar-me com a Maria Gil nos jardins do Palácio de Cristal. Um dos locais mais bonitos do Porto, Portugal. Amplo e verde, permite-nos usufruir de todos os raios de sol a que nós, mulheres, temos direito! Afinal, estamos no Verão! E, vamos falar de feminismos, mais propriamente de feminismo cigano. A Maria Gil é mulher e cigana. “Não é mulher vírgula cigana”, explica, “é mulher e cigana, o e é muito importante porque acrescenta algo. Ao facto de eu ser mulher, acrescento o cigana, é uma soma e o resultado desta soma é o que eu sou e me orgulho muito de ser”. Para além disto, também é feminista desde os dez anos de idade e sente na pele a intersecção destas três fortes camadas: mulher e cigana e feminista. 

Helena Ferreira (HF) – Diz-me como te tornaste mulher e resistente no seio de uma comunidade que, por um lado, é vítima de violência constante ao longo dos séculos por parte do patriarcado “branco” heteronormativo e por outro, é vítima do seu próprio patriarcado dentro da sua comunidade.

Maria Gil (MG) – A minha primeira resistência começou aos dez anos de idade, quando comecei a questionar porque me tratavam de forma diferente em relação aos rapazes e em relação às meninas da comunidade dita “branca”. Por exemplo, nunca percebi porque é que não podia estudar até porque o meu pai que era cigano sempre me disse que eu teria que estudar mas, entretanto este quadro alterou-se com a sua morte. De repente, fico sem pai, com uma mãe extremamente fragilizada e conservadora, que uniu a sua dor à necessidade de defender a sua versão da tradição e que aos sete anos me veste de negro e me tira da escola. Aí tomei a consciência da gravidade da situação, porque estava a ser alvo de uma superprotecção mal direccionada. Quando regresso à escola, com oito anos, volto uma menina vestida de negro e sou alvo de bullying por parte das outras crianças. Perdi o direito à cor e perdi o chão. Estou a falar nisto porque é muito importante que todas as mães e pais percebam que tirar as crianças da escola, principalmente as meninas, é uma violência e que só as estão a encaminhar para situações de fragilidade social e a dependências de terceiros.

"O patriarcado cigano, como todas as comunidades ciganas de uma forma geral, encontra-se entrecruzado pelas conjunturas de marginalidade, subalternidade e exclusão social"

HF – Existe a ideia pré-concebida de que a comunidade cigana é extremamente machista… Mais que a nossa, a dos ditos “brancos”?

MG – Não. O patriarcado cigano, como todas as comunidades ciganas de uma forma geral, encontra-se entrecruzado pelas conjunturas de marginalidade, subalternidade e exclusão social. Neste sentido, reivindicar a masculinidade e responder às normas que lhes são impostas é de vital importância para a afirmação da própria identidade, estigmatizada e desconsiderada pela sociedade dos payos (pessoas que não são ciganas). Por isso, não os posso considerar mais machistas, mas sim homens que se movem pelas circunstâncias que o meio social lhes proporciona que, por vezes, são extremamente violentas. Transgredir as leis e as normas na nossa comunidade ganha uma visibilidade absoluta. Há sempre a tendência para apresentar a nossa população como um grupo homogéneo, como se o sexismo e a opressão patriarcal fossem prerrogativas de culturas exoticizadas como a nossa. Por exemplo, se ocorrer uma violação dentro da comunidade cigana, os ciganos passam a ser todos violadores e é uma notícia que tem grande impacto na comunicação social.

HF – Sim, dá a sensação que assistimos ao aumento da violência contra a população cigana na Europa, o que se comprova com as declarações racistas que temos presenciado nos últimos dias no nosso pequeno país. Como sentes isto?

MG – Acho que toda esta violência social geral que se tem vindo a desenvolver, tem como ponto de partida o patriarcado. Não se chegava a este ponto de violência racial se as sociedades não colocassem na sua organização as relações de alteridade, de superioridade de uns seres humanos sobre os outros. E todos estes acontecimentos tornam urgente a necessidade de um activismo sempre presente e de um feminismo cigano em estado de alerta. Por exemplo, devíamos estar já nesta fase, na primeira década do século XXI, a discutir a partilha de responsabilidades e a afirmação nos processos de integração e de negociação com a sociedade dita maioritária, isto é, termos voz de igual para igual e isso não acontece. Os payos, e as payas também, ainda pretendem falar por nós, dizer-nos o que está certo e o que está errado. A cultura dominante impõe-nos uma identidade e insere-nos numa gaveta e a questão é como constróis e desconstróis a tua própria identidade e resistes a ser colocada nessa gaveta. Por outro lado, e em simultâneo, tens as lutas dentro da tua própria comunidade, pela visibilidade das mulheres e igualdade de género, o que não é fácil porque o machismo é tão perverso que gera nas mulheres um sentimento de protecção e elas sentem-se umas patetas alegres (vítimas felizes), porque o homem toma conta delas. São estas patetas alegres que defendem a divisão entre as mulheres sérias e as outras. As sérias são as firmes, as castradoras, as grandes defensoras do patriarcado contra aquelas que assumem as suas identidades, que ousam e que são verdadeiras consigo mesmas e com a dupla sociedade que enfrentam(a dos payos e a cigana) e que fazem as suas opções. Tenho a certeza que se as patetas alegres tivessem noção que são oprimidas, mais mulheres ciganas seriam feministas e livres.

HF – Existem vários estereótipos instaurados no nosso imaginário social: todas as mulheres ciganas são feirantes (vendedoras ambulantes), não estudam, casam cedo e com ciganos, e são mães de famílias numerosas.

MG – Isso é tão ridículo como eu dizer que as mulheres payas portuguesas têm todas bigode e vestem todas de preto. Sempre existiram mulheres ciganas resistentes, embora não tenham sido apelidadas de feministas. A verdade é que não têm que ser apelidadas de feministas ou considerarem-se assim. Existem mulheres ciganas em todas as profissões e que estudam. Já existem muitas mulheres ciganas licenciadas e doutoradas e que não casam nem têm filhos. Ou seja, que fazem as suas escolhas e lutam por elas. Tenho, no entanto, que referir que o grande desafio é criticar as estruturas patriarcais internas e, ao mesmo tempo, tentar evitar reforçar os estereótipos negativos sobre a nossa comunidade, por exemplo, porque defendo que todas as meninas devem estudar, não posso permitir que isso seja visto pelos payos logo como: “Pois, eles não deixam as meninas estudar porque as casam muito cedo”, ou seja, evitar que as reivindicações de género se tornem um instrumento de alterização e de estigmatização de um grupo subalterno e racializado. Tenho ainda que falar aqui da interseccionalidade que mostra o cruzamento de diferentes opressões: de género, classe, “raça” e sexualidade, sofridas pelas mulheres ciganas. As formas de discriminação interagem umas com as outras, há que afirmar a consequente necessidade de uma luta plural contra o racismo, a opressão de classe e contra o machismo tanto interno, como externo às comunidades.

HF – Passava dias a falar contigo, mas temos que terminar por agora, claro, porque vamos voltar a conversar, com toda a certeza. E, para terminar, tenho que te perguntar: O que podemos nós, mulheres “brancas” feministas fazer para apoiar as mulheres ciganas?

MG – Deixar de lado o paternalismo e sobretudo valorizar a nossa voz, porque a temos, como vês. Não podem impor-nos a vossa cultura. Deixem-nos evoluir conscientemente, construir e desconstruir a nossa identidade, tornar-nos mulheres, como referiu a Simone de Beauvoir. Não nos salvem, não precisamos de ser salvas. Nós somos a semente das Mulheres e Ciganas que não foram queimadas e esterilizadas. Existimos e resistimos.

Disponível em: https://cientistasfeministas.wordpress.com/2017/08/05/feminismo-cigano-existimos-e-resistimos-entrevista-a-maria-gil/ 


Assista aqui a uma entrevista da TV Portuguesa à Maria Gil: https://www.youtube.com/watch?v=4N-E1qDDiHc


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Maria Divina Cabral: mestra da cultura cigana Calon e mato-grossense

Projeto que contempla a mestra foi aprovado no edital Conexão Mestres da Cultura da Lei Aldir Blanc

Com enorme satisfação, a Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT) comunica a aprovação do projeto “Diva e as Calins de Mato Grosso: ontem, hoje e amanhã” no edital Conexão Mestres da Cultura da Lei Aldir Blanc, que reconheceu a raizeira e membra desta associação, Maria Divina Cabral, como uma mestra da cultura mato-grossense.

O resultado foi publicado nesta terça-feira (08/12) na página eletrônica da Secretaria de Estado de Cultura, Esportes e Lazer de Mato Grosso (SECEL-MT). Também foram aprovados outros 74 mestres e a lista pode ser acessada no link: http://www.cultura.mt.gov.br/documents/362998/15771026/Resultado+Final+Mestres+da+Cultura/e127afee-9d52-0432-a8bc-76831f79f499.

Diva, como é mais conhecida, nasceu na cidade de Mineiros (GO) e viveu boa parte de sua vida nos lombos dos cavalos, trafegando pelas cidades dos Estados da região Centro-oeste, até que no início da década de 70 fixou residência com sua mãe, pai, irmãos e parte de sua comunidade no município de Rondonópolis (a 210 km de Cuiabá, no sul do Estado).

Atualmente, a Calin mora em uma modesta residência de apenas três cômodos, na Vila Poroxo e ajuda a todos que chega com rezas, benzeções, aconselhamentos e remédios naturais. A comunidade Calon de Rondonópolis é a maior comunidade cigana de MT, reunindo em torno de 150 pessoas.

Além de premiar a mestra Maria Divina Cabral com um prêmio no valor de R$ 20 mil, o projeto contempla ainda a realização de um encontro de mulheres ciganas em Rondonópolis, que servirá como dispositivo para a construção de uma websérie documental “Diva e as Calins” e a criação de uma exposição fotográfica virtual sobre as mulheres ciganas mato-grossenses de vários municípios.

Assista ao vídeo “Uma Família Cigana” e conheça mais sobre Diva e sua família: https://www.youtube.com/watch?v=29EiQeQa_nc

Maria Divina Cabral – mestra da cultura cigana Calon mato-grossense

A cigana da etnia Calon (também pode ser escrito como Kalon ou Calom), Maria Divina Cabral, 66 anos, é uma mestra da cultura cigana em todos os sentidos. Diva, como é mais conhecida, nasceu a 25 de setembro de 1954, em uma barraca num acampamento na cidade de Mineiros (Goiás). Filha de Lázaro Alves Pereira e Lourdes Rodrigues Pereira, casou-se dentro da tradição cigana, com o seu primo (filho da irmã do pai), Jair Alves Cabral, construindo e mantendo um profundo conhecimento da filosofia Calon e seu sistema de ação e organização sociocultural.

A Calin (modo como as mulheres ciganas se autodenominam) viveu boa parte de sua vida nos lombos dos cavalos, trafegando pelas cidades dos Estados da região Centro-oeste, até que no início da década de 70 fixou residência com sua mãe, pai, irmãos e parte de sua comunidade no município de Rondonópolis (a 210 km de Cuiabá, no sul do Estado). Mãe de duas filhas, Selma e Cleide, avó de quatro netas (Lorraine, Suani, Leidiane e Cristiane) e três bisnetas (Cristina, Paula e Isabela); atualmente é a principal e mais importante raizeira e benzedeira cigana no Estado, mantendo viva a medicicna tradicional na comunidade Calon mato-grossense.

Integrante fixa do conselho de anciãos da etnia Calon e membra fundadora da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), Diva é respeitada e ouvida por todos da comunidade, por sua experiência e sabedoria na condução e salvaguarda de diversos costumes, narrativas e saberes da filosofia kalon. A sua participação e influência na comunidade, que reúne em torno de 300 pessoas no Estado, não se limita a Rondonópolis, chegando a outras comunidades Calon de municípios como Tangará da Serra, Cuiabá, Sinop, Guiratinga, Pedra Preta, Campo Novo dos Parecis e Alto Araguaia.

Apesar de não ter sido alfabetizada e nunca ter frequentado uma sala de aula, Diva é versada na língua romanó-kaló, que no Brasil é também conhecida como chibe, sabe todas as simpatias, ervas apropriadas e rituais de cura infantis, aplicando-os em crianças ciganas e não-ciganas, produz remédios e unguentos naturais para mulheres e homens que tem problemas de fertilidade e os mais variados tipos de enfermidade, sendo conhecedora de uma variedade incrível de plantas medicinais do cerrado e da floresta amazônica.

Os saberes da medicina tradicional Calon foram aprendidos pela anciã Calin ainda na infância, quando acompanhava sua mãe, dona Lourdes, ou as suas avós, Maria e Jordelina, ao cerrado ou à floresta, para fazer a colheita das plantas, ervas e matérias primas necessários para a confecção dos remédios naturais.

A raizeira começou fazendo garrafadas para si mesma ainda muito jovem, depois para os parentes e logo estava atendendo também aos não-ciganos, que passaram a cada vez mais procurá-la. Há cerca de 10 anos, desde quando sua mãe, dona Lourdes, de 84 anos se aposentou das funções de raizeira por problemas de saúde, Diva assumiu as suas funções e entre os cuidados com a matriarca, que mora no mesmo lote, vem mantendo viva a chama da medicina cigana no Estado.

Atualmente com 65 anos, a Calin mora em uma modesta residência de apenas três cômodos, na Vila Poroxo e ajuda a todos que chega com rezas, benzeções, aconselhamentos e remédios naturais. Já auxiliou a milhares de pessoas em Mato Grosso e até mesmo de outros lugares do país, como Goiás e Minas Gerais. Sempre é chamada para reuniões de aconselhamento entre os seus familiares, mesmo os mais distantes. Também é consultada sobre questões referentes aos inúmeros aspectos culturais e identitários Calon, como as leis do casamento, do luto e do funeral, o que a torna, definitivamente, uma mestra da cultura popular cigana mato-grossense e brasileira.

Em 2011, Maria Divina participou do filme documental É Kalon – Olhares Ciganos (35’), que foi patrocinado pelo Fundo Estadual de Cultura de Mato Grosso. E em 2015, foi lançado o curta-metragem “Uma Família Cigana”, que conta a história de sua família, com foco nela e em sua mãe, D. Lourdes. Entre 2014 e 2018, Diva foi uma das principais interlocutoras da tese de doutorado “Produção Social dos Sentidos em Processos Interculturais de Comunicação & Saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal”, defendida na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, Rio de Janeiro) em agosto de 2018. O trabalho foi vencedor do prêmio Compós – Eduardo Peñuela de teses e dissertaçãoes 2019 como melhor tese de comunicação do país, concedido pela Compós – Associação Nacional de Cursos de pós-graduação em comunicação; e recebeu menção honrosa no prêmio Fiocruz de teses 2019.

Desde 2017, Diva é membro fundadora e uma das principais representantes da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), uma instituição sem fins lucrativos, que foi criada neste mesmo ano e é filiada à Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC), cuja sede é em Brasília. Também em 2017 Diva participou do longa-metragem etnodocumental, “Calon Lachon”, que está em fase de produção e registrou, além da comunidade mato-grossense, também uma comunidade em Brasília, diversas comunidades Calon de nove cidades portuguesas e a peregrinação de Santa Sara Kali, que ocorre todo ano no dia 24 de maio na cidade francesa de Saintes-Maries-De-La-Mer. A produção está em fase de edição e vai ser lançada em 2019, tendo a raizeira como uma das principais personagens.