O fotolivro Non Grata, de Åke Ericson, é um retrato singular do povo cigano realizado ao longo de oito anos, em dez países europeus. "Eles sentem-se discriminados em todos os países que visitei", concluiu, em entrevista ao P3, o autor sueco.
Foi sob o calor de Agosto de 2009, na cidade de Břeclav, na República Checa, que o fotojornalista sueco Åke Ericson tomou conhecimento de uma história que viria a alterar o rumo da sua vida. “O município acabava de relocalizar duas famílias ciganas, após tê-las expulsado das suas casas – onde viviam há várias gerações – para que, no mesmo local, pudesse ser construído um centro comercial”, explicou ao P3, numa entrevista via Skype.
Ericson conheceu as duas famílias deslocadas. “Eram pessoas muito gentis, amistosas”, relatou. “O município empurrou-as para fora da cidade; passaram a viver a 15 quilómetros de distância do centro de Břeclav, em casas que não dispunham de água canalizada ou aquecimento.” O desrespeito de que foram alvo por parte da instituição governamental checa indignou o sueco, que passaria os oito anos seguintes a documentar o quotidiano deste grupo étnico minoritário em dez países europeus: Roménia, Kosovo, Sérvia, Hungria, Eslováquia, República Checa, Suécia, Suíça, França e Espanha.
“Foram 18 viagens, ao todo”, relembra o fotógrafo. “Oito anos, 18 viagens por dez países.” Mais do dobro dos países que documentou o lendário Josef Koudelka, da Agência Magnum, nos anos 70. Com este projecto, que deu origem ao fotolivro Non Grata, publicado em 2018, Åke pretende desmistificar e deitar por terra os preconceitos que se formaram, na Europa, acerca do modo de vida roma. “Quero revelar a repressão e a miséria de que são vítimas, mas também retratar aqueles que vivem integrados no quotidiano europeu.”
Entre o ponto mais a Ocidente e o mais a Oriente onde esteve em contacto com as comunidades ciganas, grandes diferenças se manifestaram, em termos de discriminação, integração e das condições em que vivem. “Em Espanha, por exemplo”, enuncia Åke, “governo após governo tentou integrá-los". "Trinta anos depois, já se dão casamentos entre roma e não-roma e a maioria das crianças ciganas já frequenta a escola pública. Também existe discriminação, claro, mas eles estão integrados. Há ciganos, na Andaluzia, que já esqueceram a língua romani.”
Viver à margem
Na Suécia, por exemplo, os ciganos “vivem em muito melhores condições” do que no Kosovo, afirma, apesar de referir que existem muitos em situação de sem-abrigo no seu país de origem. “Mas a situação a Leste é radicalmente diferente”, sublinha: “Em Mitrovica [no Kosovo], há ciganos a viver em acampamentos montados sobre solos contaminados por chumbo. Em consequência, nesse local, as crianças nascem com malformações. O estado kosovar não presta qualquer tipo de auxílio a esta população.” Åke é peremptório e não se refere, em exclusivo, ao caso kosovar. “[Os ciganos] vivem à margem da sociedade, sem quaisquer direitos humanos: sociais, políticos, culturais ou económicos.”
A posição longitudinal de cada país não é um
indicador fidedigno em matérias de tolerância. Em 2010, o então Presidente
francês, Nicolas Sarkozy, expulsou de França mais de mil indivíduos de etnia cigana, de
nacionalidades romena e búlgara. Apesar do escândalo que estalou no seio da
Comissão e do Parlamento europeus, a medida manteve-se – mesmo que, nos anos
seguintes, tenha perdido, consistentemente, tempo de antena nos meios de
comunicação social internacionais.
O fotógrafo sueco esteve, em Novembro de 2011,
nos arredores de Paris, mais especificamente na comuna de Saint Denis, e
assistiu ao desmantelamento de vários acampamentos – prática
comum do Governo francês para o combate à habitação ilegal. Visitou um
acampamento em particular, onde permaneceu alguns dias. “Nessa altura, não tive
muito tempo e as condições eram muito adversas. Quando cheguei a casa e vi as
imagens que fiz, fiquei insatisfeito. Quando regressei, por esse motivo, em
Junho do ano seguinte, as pessoas que conheci começaram a gritar ‘Mon ami,
mon ami’.” “Foi um momento muito emotivo”, recorda.
Em Zurique, na Suíça, o único retrato
que incluiu em Non Grata é referente a uma mulher roma vítima
de tráfico humano para exploração sexual. “Li sobre o assunto e decidi ir até
lá. Tive sorte, porque o bordel que encontrei, onde trabalhavam mulheres
ciganas, pertencia à máfia kosovar.” Åke desenvolvera trabalho fotográfico
documental sobre o período pós-guerra do Kosovo, entre 1999 e 2009, que deu
origem ao fotolivro prefaciado por Kofi Annan, Kosovo In Progress.
O domínio da língua albanesa ajudou-o a ganhar a confiança dos donos do
estabelecimento, que lhe garantiram a entrada. “Fiz várias imagens, mas apenas
uma integrou Non Grata”, disse. Nela figura Victoria, que paga 2360
euros de renda pelo quarto onde vive e trabalha; para trás, numa aldeia romena,
deixou a sua família e um filho de cinco anos.
Em Belgrado, na Sérvia, Åke esteve em contacto com uma situação peculiar. “Dos membros da comunidade cigana que visitei, nenhum tinha cidadania sérvia. Vivem numa floresta, dormem, por vezes, sob temperaturas de 20 graus Celsius negativos.” Os roma que vivem na Sérvia foram expulsos do Kosovo pela comunidade albanesa, por terem tomado partido no conflito que marcou o país entre 1998 e 1999. O apoio às forças militares sérvias não garantiu, no pós-guerra, qualquer protecção por parte do país, que os vê como indesejados.
“Fiquei duas semanas com eles, em Julho de 2015. Era Verão, os termómetros marcavam 42 graus Celsius, foi uma experiência difícil. Eu voltava, ao fim do dia, para um quarto de hotel refrigerado, eles não. Mas não se pense que, por isso, eu seja rico. Acho que empobreci para poder realizar o projecto.”
O fotógrafo sueco foi apoiado pelo Instituto
de Artes de Estocolmo e beneficiário de algumas bolsas de mérito. “[Esses
fundos] foram uma grande ajuda”, ressalvou, ainda que a maior parte das
despesas tenha sido suportada por si.
O foco de Non Grata está, sem dúvida, na região da Europa Central e de Leste, assume. Passou, por isso, parte significativa do seu tempo na Eslováquia e na Roménia, onde testemunhou os episódios mais críticos e onde a discriminação é mais evidente. A selecção fotográfica de Åke reflecte isso mesmo: a grande maioria das imagens foram feitas nesses países.
O maior gueto cigano na Europa
Na Eslováquia, Åke Ericson
encontrou o
maior gueto cigano da Europa: Lunik IX, em Košice. Um conjunto de edifícios
construído pelo Governo eslovaco para albergar 2500 pessoas de classe média é
agora a residência de 7500 indivíduos de etnia cigana, de acordo com dados
obtidos pelo fotógrafo. “Ao longo dos anos, Lunik IX deteriorou-se e
transformou-se numa favela onde existe um escoamento de resíduos urbanos
deficitário. As condições de vida são muito precárias, as casas não têm gás,
água ou electricidade”, descreve. Na Eslováquia, garante, ter um sobrenome
cigano ou viver em Lunik IX “é um passaporte para a pobreza e para a
marginalização”.
Åke procura entender o motivo pelo qual a comunidade cigana é discriminada na Europa e acredita que a génese está nas conversas que se geram no seio dos lares europeus. “É uma ideia passada de geração em geração”, justifica. “Os pais que têm uma opinião negativa acerca do povo roma transmitem-na aos seus filhos. É algo que passa em conversas corriqueiras que se têm à mesa do jantar. E é verdade que, quando as crianças e jovens saem à rua, também vêem pessoas ciganas a mendigar, o que vem confirmar a tese que lhes foi imputada; mas é um fenómeno circular.
No caso da Suécia, 80% dos roma que deambulam, sem rumo, pelas ruas de Estocolmo, são provenientes da Roménia e emigraram para escapar às duras condições que enfrentavam no seu país de origem. “Em Janeiro de 2015, a ministra do Trabalho, Família, Protecção Social e do Idoso do Governo da Roménia, Rovana Plumb, visitou Estocolmo”, recorda Åke. “Durante o encontro, a ministra recusou-se a admitir que existe discriminação [contra a etnia cigana] na Roménia. Não foi capaz de assumi-lo.”
Estava um dia muito frio, conta, nevava e as temperaturas rondavam os 15 graus Celsius negativos. “Rovana Plumb recusou encontrar-se com os compatriotas ciganos no exterior.” Para Åke, este é um episódio-modelo, que, acredita, está na génese da relação de mal-estar estabelecida entre ciganos e não-ciganos nos vários países de Leste, onde a tensão é palpável. “A União Europeia tem fundos direccionados para a causa da integração desta minoria que não são usados por estes países, onde a exclusão continua a ser solução”, conclui.
“Desde os três anos que me lembro de me dizerem que todos os seres humanos têm o mesmo valor, independentemente da sua origem”, recorda o sueco de 57 anos. Foi essa máxima que o guiou ao longo dos 40 anos de carreira, feitos em 2018. “Nos anos 90, trabalhava num famoso jornal escandinavo que me levou até à Ucrânia, onde fotografei uma reportagem. O resultado da peça, quando esta foi publicada, foi uma angariação de fundos que recolheu 300 mil euros em prol de uma causa. Aprendi, nesse momento, que o meu trabalho tem o poder de mudar o rumo dos acontecimentos.”
Åke Ericson acha que Non Grata, expressão que significa “indesejado”, deveria ser visto pelo máximo número de pessoas – mas, sobretudo, pela classe política de Bruxelas. “Eu não fiz este trabalho para mim ou por mim. Fi-lo com o coração, sim, mas pensando nas pessoas que retratei.”
Texto: Ana
Marques Maia
Fotos: ©Åke
Ericson