Falta de dados e políticas específicas são principais
desafios
Publicado em 12/07/2020 - 08:00 Por Pedro Rafael
Vilela - Repórter da Agência Brasil -
Brasília
Conhecidos pela grande habilidade e desenvoltura
comercial, os ciganos têm sofrido com a impossibilidade de venderem seus
produtos. Grande parte trabalha com venda e troca de diferentes tipos de
produtos e utensílios, mas foi necessário paralisar as atividades em meio à
pandemia do novo coronavírus. Sem alternativas de renda, muitas famílias têm
dependido da assistência do poder público e de doações, mas que não chegam a
todos. É o caso da comunidade de ciganos que vive em Sousa, no sertão da
Paraíba, uma das maiores do país, com mais de 450 famílias, e também uma das
mais vulneráveis.
"Historicamente, nós ciganos sempre encontramos
muitas dificuldades para conseguir emprego, por isso a troca e a venda são tão
importantes, mas desde o início da quarentena deixamos de trabalhar",
afirma Francisco Bozzano, um dos líderes ciganos em Sousa. Apesar de o
acampamento não ficar na área urbana do município, a chegada do novo
coronavírus deixou a comunidade apreensiva.
"A gente passou a deixar só
uma pessoa ir até a cidade para comprar algo, para evitar ao máximo o contágio.
Sabemos que se alguém pegar esse vírus, não vamos ter muito acesso à saúde e
essa pessoa pode morrer", diz Bozzano, que reclama do posto de saúde que
não tem médico e da dificuldade de obter o auxílio emergencial de R$ 600
oferecido pelo governo federal. Como líder de uma extensa família, Bozzano
tentou inscrever as pessoas no programa, mas nem todos conseguiram se cadastrar
ou tiveram o benefício concedido.
De acordo com dados do Ministério da Cidadania, 5.604
famílias ciganas estão inscritas no programa Bolsa Família. Elas passaram a
receber o auxílio emergencial durante a pandemia, mas o governo ainda não tem
dados sobre os demais ciganos que conseguiram obter o benefício a partir do
cadastro como trabalhadores informais, realidade da grande maioria.
"Foi
solicitado à Secretaria Especial do Desenvolvimento Social do Ministério da
Cidadania, em 20 de maio de 2020, as informações disponíveis sobre o acesso dos
povos e comunidades tradicionais ao auxílio emergencial, sobre o total de
beneficiados, casos em análise e casos não deferidos", informou a
Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) do
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em nota
enviada à reportagem.
Dados
Um dos principais desafios para lidar com a situação
dos ciganos na pandemia é a falta de dados. Não se sabe ao certo o tamanho
dessa população no Brasil nem sua distribuição geográfica. O único dado oficial
começou a ser coletado em 2011, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) concluiu um levantamento sobre a existência de acampamentos
ciganos em 291 municípios de 21 estados. No entanto, o levantamento é
impreciso, já que só foram contabilizadas as prefeituras que responderam à
pesquisa. Além disso, a maioria dos ciganos no país não está mais localizada em
acampamentos e muitos já se fixaram em áreas urbanas, constituindo em bairros
inteiros onde praticamente só vivem ciganos, já que a cultura de viver em
proximidade é muito forte entre eles.
"O IBGE só contabiliza acampamento, e acampamento
é o mínimo. Você só pode conduzir política pública séria no país é se você
tiver dados e números", afirma Elisa Costa, diretora da Associação
Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK), uma entidade sem fins lucrativos, com
sede em Brasília, que atua na divulgação da cultura cigana e na defesa dos
direitos humanos dessa população tradicional.
"Outro imenso problema é que, como parte dos
ciganos mantém uma mobilidade, eles não costumam ter registro de nascimento de
seus filhos, a partir de quando grande parte dos ciganos não tem nem existência
jurídica. Os que têm, muitas vezes não conseguem ter os demais registros, como
CPF [Cadastro de Pessoa Física], carteira de identidade. Quando chega uma
pandemia, encontra um grupo já fragilizado economicamente, civilmente,
juridicamente, não consegue estar no Cadastro Único de programas sociais do
governo, então a crise cai sobre a cabeça dos ciganos de uma maneira mais
dolorosa", afirma Luciano Mariz, subprocurador-geral da República,
considerado um dos precursores da causa cigana no Ministério Público Federal
(MPF), órgão que tem sido importante no reconhecimento e na garantia de direitos
dessa população.
Segundo a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial, o IBGE fará um censo populacional dos ciganos, mas ainda
não há data definida. "A SNPIR trabalha junto ao IBGE para a construção
deste trabalho com a realização de seminários para aprimoramento dos mecanismos
de pesquisa do instituto junto às instituições representativas", informou
o órgão.
Avó e netos do clã Kalderash durante pandemia, no Rio
de Janeiro. - Arquivo/AMSK Brasil
Da diáspora ao reconhecimento
A teoria mais aceita entre os estudiosos é que os
ciganos têm origem na Índia, a partir de uma dissidência de castas no país
asiático, há cerca de mil anos, que fez com que o grupo se espalhasse primeiro
pela Europa e depois para o resto do mundo (diáspora). No Brasil, acredita-se
que os primeiros ciganos chegaram em 1574 ou um pouco antes, segundo registros
dos padres jesuítas. Há três etnias mais importantes: os Calon, grande maioria
no país, oriundos da Espanha e Portugal, os Rom, com origem na Romênia, Turquia
e Grécia, e os Sinti, que vieram principalmente da Alemanha e da França.
A perseguição constante estimulou o caráter nômade do
povo cigano e desenvolveu sua característica mercantil, mas também fez com que
uma série de mitos, preconceitos e estereótipos fossem associados à comunidade.
"As sociedades locais na Europa e nas Américas atribuíam qualquer tipo de
aberração a esse grupo de forasteiros para eles irem embora, foi aí que se
formou um imaginário. Como se fosse traço cultural, passou-se a acreditar que
ciganos roubam crianças, que são ladrões, mas isso foi atribuído ao nosso povo
por pessoas que não queriam que a gente ficasse no mesmo local que eles",
conta Anne Khelen, de Maceió (AL), uma cigana descendente dos Louvara, um
sub-clã dos Rom.
A primeira legislação a mencionar a presença cigana no
Brasil só foi editada na década de 1930, no governo Getúlio Vargas, mas com o
objetivo de proibir a entrada dessa população no país. Nas décadas seguintes,
os ciganos permaneceram na invisibilidade e sobreviveram, no plano
internacional, até mesmo ao nazismo, quando a perseguição de Adolf Hitler na
Alemanha do final da década de 1930, durante o Terceiro Reich, resultou no
holocausto de cerca de 1 milhão de ciganos.
Em território brasileiro, os ciganos só passaram a ter
um reconhecimento público mais visível no final da década de 1990, durante as
primeiras discussões étnico-raciais no plano nacional de direitos humanos. Mas
a agenda passou a ganhar mais impulso a partir de 2003, com a criação da
Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério.
Em 2006, um decreto criou o Dia Nacional do Cigano, celebrado em 24 de maio. Em
2011, o Ministério da Saúde editou a Portaria 940, que dispensou a apresentação
de comprovante de residência para ciganos itinerantes obterem o cartão do
Sistema Único de Saúde (SUS).
No ano seguinte, o Ministério da Educação
publicou uma resolução para assegurar às crianças, adolescentes e jovens em
situação de itinerância o direito à matrícula em escola pública, outra demanda
dos ciganos. Na prática, no entanto, muitos ciganos reclamam que as medidas não
são cumpridas na ponta. "São políticas ainda insuficientes, mas começou a
mover o poder público", afirma Igor Shimura, presidente da Associação
Social de Apoio Integral aos Ciganos (Asaic).
A expectativa agora é que o governo avance numa agenda
mais ampla de garantia de direitos, mas também da sua promoção. Além do Plano
Nacional do Cigano, que está em construção no âmbito do Ministério da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos, tramita no Congresso Nacional o projeto de
lei que cria o Estatuto do Cigano, que prevê um conjunto de políticas públicas
na área de saúde, educação e cultura para o povo cigano e pode representar um
passo importante para tirar essa população da invisibilidade histórica. Se
aprovado, o estatuto vai assegurar a obrigatoriedade do ensino da história
geral da população cigana nas escolas, a preservação das línguas tradicionais e
do patrimônio cultural cigano.
"A gente vive numa sociedade que odeia ou obriga
a comunidade cigana a se estereotipar. Se eu não uso dente de ouro, saia,
roupas coloridas, não sou cigano, isso é muito doloroso. Muitas famílias
preferem simplesmente anular isso, anular essa ancestralidade, mas aí quando a
gente vai estudar e pesquisar, a gente se reconhece, por isso é importante dar
a esse cigano o direito de conhecer a própria história e se reconhecer nela.
Acho que pouco a pouco temos avançado, sou otimista", afirma Anne Khelen.
Edição: Aline Leal
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-07/invisiveis-ciganos-lutam-por-sobrevivencia-em-pandemia-de-covid-19
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