Foto: Fábio Pozzebom, Agência Brasil
Publicado em 12/07/2020 -
08:05 Por Pedro Rafael Vilela - Repórter da Agência Brasil - Brasília
A histórica situação de
vulnerabilidade das comunidades ciganas no Brasil tem cobrado seu preço durante
a pandemia do novo coronavírus. Além dos casos de expulsões de famílias
acampadas, ciganos têm relatado falta de assistência social e sanitária por
parte do poder público e aumento dos casos da covid-19, doença causada pelo
novo coronavírus. Não há um balanço oficial, mas levantamento do Instituto
Cigano no Brasil (ICB), entidade com sede em Caucaia (CE), aponta que, até
agora, um total 13 ciganos, em pelo menos oito estados, morreram após contrair
a infecção. Esse número, no entanto, pode estar subestimado.
"A gente tinha o
temor de que o primeiro cigano adquirisse o vírus. Os ciganos, mesmo aqueles
que não moram em acampamentos, geralmente ficam todos juntos, moram sempre no
mesmo bairro, em casas próximas. Dificilmente você vê um cigano morando
isoladamente e isso faz com que o vírus, uma vez sendo contraído por uma
pessoa, rapidamente se dissemine", afirma Jucelho Dantas da Cruz, cigano
da etnia Calon e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS),
na Bahia.
Em Camaçari, região
metropolitana de Salvador, um surto da covid-19 em um bairro com grande
concentração de ciganos mobilizou uma reação coletiva após a suspeita de que
cerca de 40 pessoas haviam sido contaminadas, no final de maio. "Depois
que a gente denunciou publicamente e cobramos ação da prefeitura, eles vieram
ao bairro fazer os testes. Só da minha família, foram dez contaminados. Desses,
três têm comorbidades. Foram duas semanas de muita tensão. Três de meus irmãos
foram internados, além da esposa de um deles. Todos se recuperaram, voltaram
para casa e ficaram reclusos. Os outros que tiveram teste positivo ficaram
assintomáticos", relata Jucelho.
Homenagem
Presidente do Instituto
Cigano do Brasil, Rogério Ribeiro, também da etnia Calon, criou uma página nas
redes sociais para registrar as mortes de ciganos vítimas da covid-19. "O
objetivo é tirar da invisibilidade cidadãos que têm família, história e
deixaram um legado após a morte", explica.
Entre as vítimas da
covid-19 está o músico Antonio Ferreira dos Santos, conhecido como Cigano
Barroso, de 62 anos, que morreu na cidade Sobral (CE), no dia 2 de junho, após
passar uma semana internado na Santa Casa da cidade.
Na Bahia, o comerciante
Lomanto Marques, de 57 anos, morreu no dia 12 de junho, depois de ficar 21 dias
no hospital Português, na capital Salvador. Ele era da comunidade cigana de
Camaçari.
Ciganos jovens, fora do
grupo de risco etário para a covid-19, também estão entre os mortos pela
doença, segundo levantamento do ICB. É o caso de Velodia Joce Blado, de 36
anos, cigano da etnia Rom, que faleceu no início do mês passado, em Guarulhos
(SP). No Espírito Santo, a estudante cigana Dayana Soares Galvão, de 24 anos,
também morreu em decorrência de infecção pelo novo coronavírus.
Além da distribuição de
cestas básicas, os ciganos têm cobrado apoio para aquisição de material de
higiene. "Temos pedido a distribuição de produtos para fazer a
desinfecção. Existem muitas famílias ciganas pobres, sem condições de comprar
produtos de higiene", afirma Ribeiro.
Levantamento do Instituto Cigano do Brasil (ICB)
Ações
Na Bahia, onde três
ciganos já morreram e estimativas indicam que centenas já foram contaminadas, o
governo estadual prometeu a distribuição de máscaras para comunidades
tradicionais. "Atualmente, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial
(Sepromi) tem trabalhado na distribuição de 150 mil máscaras de tecido, por
meio de entidades representativas dos segmentos, ação que alcançará mais de 600
comunidades tradicionais e das periferias", informou a pasta, em nota enviada
à reportagem.
Em âmbito nacional, as
políticas de inclusão social de povos e comunidades tradicionais são
articuladas pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SNPIR) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).
Procurada pela Agência Brasil, a pasta informou que, no caso específico dos
ciganos, "tem buscado promover ações de apoio à população vulnerável
diante do enfrentamento ao novo coronavírus, por meio do fortalecimento de
instituições sem fins lucrativos que atuem com trabalho voluntário na
sociedade".
Sobre a distribuição de cestas básicas, a pasta disse que a
prioridade tem sido dada para áreas indígenas e territórios quilombolas, mas
que parcerias com governos estaduais têm sidos realizadas para atender aos
ciganos. "As cestas básicas distribuídas foram destinadas aos povos
indígenas e comunidades quilombolas. Entretanto, iniciativas do programa Pátria
Voluntária, dos entes estaduais e dos entes municipais, focaram, também, no
atendimento aos ciganos", acrescentou.
Ciganofobia: preconceito
e expulsões
Episódios de racismo e
preconceito fazem parte do cotidiano das comunidades ciganas há várias décadas,
mas o contexto da pandemia agravou esse cenário, principalmente para as
famílias que ainda mantêm as características de itinerância, transitando entre
diferentes acampamentos de tempos em tempos.
Ao menos três casos de
expulsão de famílias de acampamentos foram registrados em municípios do
interior do país. Em abril, cerca de 100 famílias de ciganos foram proibidas de
permanecer na cidade de Dois Vizinhos (PR), após intervenção de agentes da
prefeitura e da Polícia Militar. Eles estavam prestes a acampar em uma área
tradicional de rancho cigano, quando foram interceptados e obrigados a deixar
os limites do município.
"É o que a gente
chama de ciganofobia. Algumas pessoas começaram a associar os ciganos como
vetor do novo coronavírus", afirma Igor Shimura, diretor da Associação
Social de Apoio Integral aos Ciganos (Asaic).
Após ser expulso de Dois
Vizinhos, o grupo de ciganos, que incluía grande quantidade de idosos e
crianças, se deslocou para Guarapuava (PR), outra cidade do interior
paranaense, onde também foram impedidos de permanecer, em um primeiro momento.
Foi preciso uma negociação com o advogado das famílias para que eles
conseguissem se instalar nas imediações da cidade, por meio de um acordo com a
polícia militar.
"Antes da pandemia,
já era difícil para os ciganos, principalmente os itinerantes, quando chegam
numa cidade. São mal vistos, tem aquelas lendas preconceituosas que se criam
sobre o nosso povo", afirma Antonio Alves Pereira, da etnia Calon, integrante
do Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná.
Procurada pela Agência
Brasil, a prefeitura de Dois Vizinhos informou, por meio de nota, que a chegada
dos ciganos na cidade promoveu aglomeração, contrariando as normas de distanciamento
social em locais públicos.
“Esclarecemos que a fiscalização do município
recebeu denúncia de moradores das imediações do Estádio Municipal dando conta
que ciganos estavam se instalando no estacionamento do mesmo. No local havia
inúmeras pessoas em aglomeração. Diante da denúncia os fiscais se deslocaram
até o referido endereço e solicitaram que os integrantes do grupo
providenciassem a retirada do acampamento do local, uma vez que o grupo havia
se deslocado de Cascavel (PR) para Dois Vizinhos (PR). Em Cascavel, as
informações eram que o município já estava enfrentando a transmissão
comunitária da covid-19”, diz a nota.
Meu rancho, minha casa
Outro caso de expulsão de
ciganos em meio à pandemia ocorreu em Paim Filho, interior do Rio Grande do
Sul. Após eles acamparem em uma área de ocupação tradicional do grupo, no final
de maio, a prefeitura da cidade entrou com uma ação de reintegração de posse na
Justiça, para que eles fossem obrigados a se retirarem do local. O principal
argumento utilizado pela administração municipal foi justamente a ideia de
evitar aglomerações.
"Quando os ciganos estabelecem acampamentos, eles
permanecem mais reclusos no local, ainda mais no contexto da pandemia. Além
disso, os locais onde eles acampam representa a casa deles, o seu território
tradicional de ocupação. Eles têm esse sentimento, muitos nasceram nesses
acampamentos", afirma Marcelo Almeida, advogado que defende comunidades
ciganas na Região Sul do país.
No caso de Paim Filho, a
Justiça não concedeu a liminar de reintegração de posse e garantiu a
permanência dos ciganos no local, mas eles acabaram, dias depois, decidindo
deixar a cidade.
Para Maria Jane Soares,
integrante do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, falta preparo
das prefeituras para lidar com as especificidades culturais dos povos ciganos.
"Em nossos caminhos rotativos, a gente tem que ter um canto de parar,
repousar, que são os ranchos, mas temos essa dificuldade porque as prefeituras
não querem trabalhar com a inclusão dos ciganos, garantindo reconhecimento e
assistência nesses locais. Quando a prefeitura trabalha com os povos
tradicionais, o racismo é reduzido. Quando as prefeituras viram as costas, o
racismo fica mais forte", aponta.
Segundo Antonio Alves
Pereira, cigano do Paraná, os grupos itinerantes no estado têm adotado outras
estratégias, durante a pandemia, para evitarem a perseguição em municípios do
estado. "Muitos estão separando grupos de 15 a 20 famílias em grupos
menores, por medo de serem expulsos. Nossa orientação tem sido para que eles
evitem as cidades maiores e permaneçam isolados nos acampamentos."
O governo federal
informou que monitora as tentativas de expulsão de ciganos instalados em
acampamentos e que tem tentado dialogar com as prefeituras, por meio do Ministério
da Saúde. "Recebemos as informações de tentativas de expulsões em Camaçari
(Bahia), Piripiri (Piauí) e Paim Filho (Rio Grande do Sul). Nas três cidades, a
Secretaria Nacional de Promoção de Políticas de Igualdade Racial entrou em
contato com os representantes dos grupos ou associações representativas para
compreender as demandas e realizar os encaminhamentos.
Todas eram relacionadas
a questões da covid-19. Desta maneira, a secretaria encaminhou as demandas para
o Ministério da Saúde realizar um acompanhamento direto com o município, com
exceção da cidade de Paim Filho, pois o grupo já havia deixado a cidade por
conta própria, mesmo havendo uma decisão judicial a favor da continuação deles
na cidade", informou a SNPIR em nota enviada à reportagem.
Edição: Aline Leal
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-07/em-vulnerabilidade-ciganos-temem-efeitos-da-pandemia-em-comunidades
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