Embora nós povos ciganos estejamos presentes no Brasil desde os primórdios da colonização, durante quase 500 anos de contribuição à construção da história e da identidade nacional brasileira, apenas nos últimos 15 a 20 anos, conseguimos o olhar do Estado e da população majoritária para a construção de acolhimento e reconhecimento desta contribuição.
Ao longo de quase 300 anos, nossos
antepassados chegaram ao país degredados de Portugal, expulsos pelo crime de
serem ciganas ou ciganos, divergindo da identidade e da sociedade local. Em
toda Europa, fomos perseguidos com leis e normas colonialistas e violentas, que
entre outras, visavam a nossa assimilação completa, a expulsão ou a eliminação
total – exemplo pouco conhecido desta realidade foi o nazismo que assassinou
entre 250 e 500 mil pessoas romani.
Os primeiros registros
escritos da presença cigana em Portugal são do fim do século XV. Quanto ao
Brasil, em 1.574 há uma sentença lusófona contra João de Torres e sua esposa
Angelina condenando-os ao degredo em Brasil pelo fato de serem ciganos que não
abandonavam seus costumes, cultura e identidade, que entre outros, incluía o
andar em bando, o vestir de forma tradicional e o domínio da língua romanó-kaló.
Em Brasil, nossos antepassados
já chegavam uma série de proibições, que incluíam violências físicas e
simbólicas. Em síntese, queriam apagar a nossa identidade e origem,
“civilizar-nos”, diriam as teorias antropológicas evolucionistas. Também por
aqui, o estado colonial e depois o estado brasileiro nos perseguiu com inúmeras
leis, que se expressavam por normativas federais, estaduais e municipais.
As Correrias Ciganas
As polícias de todos os
Estados, em especial de Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro,
durante quase 200 anos ininterruptos manteve em prática a política de expulsão
e assassinato dos grupos ciganos, principalmente, os que viviam de forma
itinerante e em barracas. O pesquisador e antropólogo Frans Moonen e o
historiador e pesquisador Rodrigo Teixeira relata em uma série de publicações
vários desses episódios extremamente violentos, que ficaram conhecidos como “As
Correrias Ciganas”.
As correrias ciganas
consistiam em as polícias invadirem os acampamentos matando indistintamente
mulheres, crianças, idosos e adultos. A ação provocava a fuga em desespero dos
sobreviventes, que se embrenhavam em matas e florestas, largando bens e
pertences que conseguiam acumular, como cavalos, tralhas de arreios, panelas,
roupas e enxovais, alimentos, entre outros, que eram apropriados pelas
polícias.
Esses episódios ocorreram com
mais força até a década de 70, mas ainda continuam a ocorrer hoje de forma
esporádica. As populações ciganas têm medo das polícias e há um ranço histórico
de desconfiança, aliado a um imaginário preconceituoso, estereotipado e racista
por parte destas corporações. Um exemplo foi um caso que ocorreu em Vitória da
Conquista, no Estado da Bahia, em junho de 2021.
A partir de um confronto entre
a polícia militar (PM) e uma família cigana composta por 10 irmãos, que
resultou na morte inicial de dois policiais e dois ciganos, a instituição
passou a caçar os irmãos em fuga, promovendo um verdadeiro terror com várias
pessoas e comunidades romani do município e da região, que não tinham qualquer
envolvimento com o caso. As ações incluíram invasão e queima de casas e carros,
bem como espancamentos e torturas inclusive a mulheres idosas e grávidas.
Luta antiracista
Mas não é apenas o estado brasileiro que praticou essas políticas persecutórias e racistas contra as pessoas romani. A própria população brasileira tem uma visão bastante estereotipada e equivocada das pessoas ciganas, que permeia um imaginário sociocultural herdado do imaginário português. É uma ótica que nos enxerga oscilando entre a romantização ou a negativação total, que inclui, ora nos ver como espíritos livres com belas mulheres que cavalgam errando pelos sertões, sem qualquer compromisso social; ora como bandidos perigosos, sequestradores, ladrões e trapaceiros, sujos e maltrapilhos, que precisam ser eliminados ou urgentemente civilizados.
Diferente de toda essa
construção social histórica, nós temos nossos valores, tradições e costumes,
que se conservaram como culturas e identidades de resistência, não apenas no
Brasil, como em Portugal e todos os países europeus, que praticaram políticas
semelhantes. Em Terras Tupiniquins a partir da Constituição federal de 1988 e a
redemocratização, o estado brasileiro passou a olhar-nos de outras formas, propondo
algumas poucas iniciativas e políticas afirmativas.
Enquanto identidades
tradicionais, também começamos a nos articular, fundando a partir deste período
um movimento cigano nacional, que vem se construindo com representações e
demandas de reconhecimento e de políticas afirmativas em todas as áreas,
incluindo educação, saúde, segurança, trabalho, previdência social, cultura,
esporte e lazer. Cobramos a cidadania e a inclusão social, que historicamente nos
foi negada. E conseguimos nesses 34 anos de Constituição Federal avanços
importantes, que incluem uma data em que se comemora o Dia Nacional dos Ciganos
(24 de maio), aprovada em 2006.
Povos Ciganos: Povos Tradicionais
No ano de 2007, o governo
brasileiro, nos reconheceu, por meio do Decreto 6040, como povos e comunidades
tradicionais (PCTs), nos incluindo ao lado de outros mais de 24 PCTs, como
indígenas, quilombolas, rezadeiras, quebradeiras de coco, retireiros do
Araguaia, pantaneiros, morroquinos, entre outros. Em 2011, o Ministério da
Saúde publica a Portaria 940 de 2011, reconhecendo a especificidade do
nomadismo cigano, permitindo que o atendimento nos serviços do SUS aconteça sem
a exigência do comprovante de endereço, como ocorre com as populações fixas.
Também no âmbito da saúde, em
28 de dezembro de 2018, o Ministério da Saúde publicou a portaria 4.384, que
criou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani.
Esta política, reconhecendo as especificidades dos grupos e etnias ciganas,
estabelece várias ações para que os três entes do SUS, governos federal,
estadual e municipal, implementem visando este melhor atendimento. Além disso, acabou
de ser aprovado no senado federal projeto de lei 248/2015, de autoria do senador
Paulo Paim, que cria o Estatuto dos Povos Ciganos. A política traz garantias de
políticas públicas e afirmativas em todos os setores e serviços cidadãos e deve
agora ser apreciada na Câmara dos Deputados.
Infelizmente, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) não nos contabiliza no censo
nacional. Mas estimativas do governo federal indicam que somos aproximadamente
500 mil pessoas, vivendo em todos os Estados brasileiros. Temos no país grupos
ciganos dos três principais troncos étnicos, pela ordem de número e
antiguidade: os Calon, os Rom e os Sinti, que se subdividem em outros inúmeros
subgrupos.
Guardamos valores filosofias
de vida, que contrapõem o estilo de vida capitalista e ocidental. Um exemplo é
o modo como colocamos os seres humanos e a natureza acima do dinheiro e dos
bens materiais. Outro é o modo como continuamos a ver a humanidade como parte
integrante da natureza e, portanto, com uma sustentabilidade ambiental.
Claro que muito ainda precisa
ser feito para que saíamos da exclusão e da desigualdade social, sendo
reconhecidos como verdadeiros cidadãos. Mas estamos no caminho e mais unidos do
que nunca. Tenho certeza que sim, vale a pena comemorar o dia nacional dos
ciganos. Apenas uma data não muda muita coisa, mas é um momento para
construirmos visibilidade e fazer a sociedade e o estado ouvirem as nossas
vozes, demandas, valores e sensibilidades.
Viva os povos ciganos!
Aluízio de Azevedo, mestre e
doutor pesquisando os povos ciganos, ativista e artista Calon, assessor para
ciência e comunicação da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso
(AEEC-MT) e Conselheiro Nacional de Igualdade Racial representando os povos
ciganos.
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