sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Mulheres ciganas de MT guardam tradição da cura pelas ervas


A kalin Maria Divina Cabral, de Rondonópolis é uma das raizeiras 
mais antigas do Estado, conhecendo uma grande variedade de plantas medicinais do cerrado.

Quem vê de longe a pequena casa “meia água” de três cômodos, não imagina que um lugar tão simples é o lar de uma família cigana kalon, que conserva inúmeros saberes. Práticas e narrativas históricas, que foram acumuladas ao longo de séculos de nomadismo e contato, primeiro com povos orientais e africanos e depois com nações europeias e povos americanos. Nessa modesta residência, que fica na Rua um, da Vila Poroxo, Rondonópolis (a 210 km de Cuiabá), mora há cerca de 45 anos a raizeira e benzedeira kalin, Maria Divina Cabral, de 65 anos e seu marido-primo, Jair Alves Cabral, 67.

Foi ali, que ao chegar em Rondonópolis há cerca de 45 anos atrás, abarracou com a família dos pais, construiu sua casa, casou, criou as duas filhas Cleide e Selma, a neta Jéssika e ajuda a cuidar e dar carinho às três netas: Leidiane, Cristiane e Suiani. É nesse mesmo espaço, em outra casa também “meia-água” que viu o pai Lázaro Cigano viver os últimos dias e é onde continua morando sua mãe, Lourdes, que próxima de completar 80 anos, mantém as memórias do tempo de nomadismo e relata com lucidez experiências boas e as dificuldades passadas “andando” pelos sertões, vilarejos e pequenas cidades, entre Minas Gerais, onde nasceu e depois pelo Estado de Goiás, até fixar residência.

“Hoje a vida morando tá mais fácil. Temos água encanada, pia, chuveiro, luz elétrica, televisão e outras coisas.  Naquele tempo a gente vivia acampando de um lado para o outro. Era bom, porque tinha liberdade, conhecia muitos lugares, mas também era ruim, porque muitas vezes a gente passava o dia inteiro andando de baixo de chuva e chegava a noite, precisava parar para pousar e tinha fazendeiro que não queria dar o lugar pra gente parar”, relembra dona Lourdes, salientando que tudo o que aprendeu da vida cigana foi com os pais e os avós.

Raízes - Entre os saberes romani, destaca-se a língua Romanó-Kaló ou “chibe”, que tem como base o sânscrito e recebeu influência céltica, hebraica, árabe, espanhola e portuguesa. Outra diferença é a estrutura familiar extensa, que viabiliza modos de vida e organização social e cultural opostos ao estilo de vida ocidental, a exemplo do modo como lidam com o processo de saúde-doença-cura, buscando auxílio na utilização das plantas e seus derivados, como caules, raízes, cascas, frutos, folhas e flores, para os cuidados e o equilíbrio corporal, mental e espiritual. Práticas e conhecimentos que Diva e sua mãe Lourdes, mantêm vivos, ajudando muita gente que procura por seus cuidados e conselhos.

A medicina tradicional kalon tem sido desenvolvida, aplicada e mantida pelas mulheres ciganas, especialmente, as de meia-idade e mais velhas. Entretanto, a atividade se conservou ao longo dos anos de forma oral e repassada de geração em geração. Atualmente com 65 anos, Diva salienta que aprendeu a cura pelas plantas ajudando sua mãe e suas avós Maria e Jandica, três raizeiras e benzedeiras respeitadas entre ciganos e não-ciganos, a buscar as ervas no cerrado. Ou ajudando-as a prepará-las, um processo que envolve diferentes técnicas e destreza, a depender do tipo da planta e doença a ser cuidada. Ela faz questão de dar os remédios para as três bisnetas Cristina, Paula e Isabela.

“Tenho garrafada em casa na minha geladeira, que eu tomo direto. E  a gente não toma remédio dos médicos, se tiver garrafada, porque muitos remédios dos médicos intoxicam. Você toma para uma coisa e ataca outra, o fígado, o estômago, ataca tudo. E esse aqui, não! É remédio original, ele vem da floresta, você toma sem medo e pode tomar todos os dias e vai ver o bom efeito”, enfatiza Diva, que também benze de quebranto e dá banho de malssimioto e verme na carne, “doenças que os médicos não curam”.

E continua: “A planta medicinal veio desde o começo do mundo. Não é só índio que entende de erva. Antigamente, não tinha médico e o pessoal se tratava mais com raiz. Tinha na horta para dor de barriga, para qualquer coisa. Hoje tem muitas coisas de doença que vem para as pessoas pelo alimento, porque tudo que vai comer tem agrotóxico, química, tomate, óleo... Você vive na base do veneno. Hoje, dificilmente, você achar uma pessoa saudável, sadia. Só vê com doenças, rins, fígado, pele... mas a nossa família segue a tradição da raiz e é difícil você ir em médico”.

Dona Maria de Lourdes Pereira, mãe de Diva, ensinou aprendeu a arte
da cura pelas ervas com a mãe Maria de Jesus e ensinou a filha a conhecer as plantas medicinais

Troncos – Pertencente ao tronco étnico cigano kalon – os outros dois são Rom e Sinti –; a família de Diva se ramifica por várias cidades de Mato Grosso, concentrando-se em Rondonópolis, Tangará da Serra e Cuiabá. E é composta por cerca de 300 pessoas, boa parte seus irmãos, cunhados, tios, sobrinhos e primos. Uma comunidade, que assim como outras espalhadas pelo Brasil, guarda costumes ímpares, como relata Diva, que nasceu em Mineiros (GO):  

“Eu sinto muito orgulho da nossa tradição. Vem de muitos anos. A gente viajava de tropa, acampava por muitos lugares e muitas cidades. Matava porco, vaca... As nossas barracas pareciam uma cidade e o povo de fora vinha para apreciar”. Conforme a raizeira, mesmo sem um reconhecimento formal, a tradição cigana é sábia.

“Não tenho estudo, mas tenho a sabedoria de Jesus na minha cabeça. Tudo que pertencer de remédio de Kalon, de cigano, linguagem e tradição eu sei”, pondera, ao mesmo tempo em que rebate um preconceito histórico de que ciganos são ladrões: “você não vê um cigano preso porque matou, porque estuprou, roubou ou assou. Não tem nenhum, você pode caçar, é muito difícil acontecer com cigano. E os gadjon (não ciganos) você vê, cada um sair com a tornozeleira no pé. Onde você anda tem um. Eles querem ser melhores e não são. Todas as nações são iguais”, enfatiza.


Essas plantas podem ser utilizadas para diferentes enfermidades. Entre elas: dores de cabeça, febres, enjoos, diarreias, renais, saúde sexual, impotência e infertilidade masculina e feminina, abortivos, queimaduras e machucados, reumatismo, sífilis e gonorreia, memória, pele, cabelo, contra picada de cobra, entre outras. Mas exige um processo de manipulação com várias etapas que envolve secagem, dosagem, misturas em água ou vinho e que, por vezes, é acompanhado por rezas ou práticas ritualísticas próprias que misturam outros materiais naturais, como mel, leite materno, ou argila.


Enfatizando que segue “origem e a tradição da avó”, que fazia garrafada para as mulheres, as crianças, que  nunca foram em medicina, Nilva tem certeza que “erva do mato é melhor que um remédio da medicina, porque o da medicina contém muitas misturas e esse aqui vem da natureza puro!” E relata uma cura de uma enfermidade que adquiriu logo após o nascimento e quase a levou a óbito.

“Quando tinha uns seis meses, fiquei internada com problema de bronquite, asma e fiquei só o couro e o osso. Daí minha vó disse: ‘meu filho, tira sua filha daí, que ela vai morrer’. E falou assim: “oh, vou fazer um remédio para ela com umas plantas do cerrado e se ela aguentar, vai escapar”. Ela fez o remédio, eu tomei e aguentei, fui teimosa, queria viver, sarei e hoje tô aqui essa mulherona forte e sadia. Não fui em médico, não tenho problema e tudo através da planta medicinal. Se todo brasileiro tivesse conhecimento da planta medicinal, jamais eles iam tomar remédio de médico, feito de bioquímica”, sentencia.

Folhas – Importante ressaltar que as comunidades ciganas não são homogêneas e os três grandes troncos étnicos, os kalon, os rom e os sinti, se subdividem em inúmeros grupos; que juntos somam cerca de 15 milhões de pessoas vivendo em todos os continentes e países, o que nos torna muito diversos. Desde o século X, quando chegaram na Europa, sofreram com sucessivas políticas persecutórias. A mais grave foi o nazismo, que assassinou mais de 500 mil ciganos.

Em Portugal, onde estão desde o século XIV, foram editadas leis que proibiam as pessoas ciganas de andarem juntas, de falarem suas línguas, de exercerem suas profissões tradicionais, enfim, de serem ciganos, sob pena de prisão, tortura, assassinato ou degredo. Hoje a população cigana, cerca de 100 mil pessoas, é a minoria que sofre mais preconceitos e está em situação de exclusão e desigualdade social no país.

Foi através do degredo português que os Kalon chegaram ao Brasil no primeiro século da colonização, onde não existe registros oficiais, mas estima-se que sejam aproximadamente 500 mil pessoas, vivendo em todos os Estados. Registros históricos apontam para a presença cigana fazendo comércio em terras tupiniquins já nos anos de 1530. Até a independência do Brasil (1822), milhares de famílias ciganas foram para cá degredadas. Junto com os portugueses veio o racismo contra as pessoas ciganas.

Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU, 2016), “no Brasil, as famílias de ciganos estão frequentemente em situação de extrema pobreza, sem acesso a eletricidade, água potável e saneamento básico adequado”. E atualmente, os grupos ciganos luta para melhorar suas condições de vida, serem integrados na sociedade brasileira, mas sem perder suas especificidades étnicas.

Apesar desse histórico, os grupos ciganos ajudaram a construir a identidade nacional de vários países, inclusive o Brasil, exercendo uma forte influência na culinária e na música popular brasileira, como o Samba e a música sertaneja. E resistem enquanto culturas e identidades próprias distintas da cultura e identidade nacional.

Aluízio de Azevedo
Da Assessoria de Comunicação da AEEC-MT para o Jornal A Gazeta

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