terça-feira, 5 de agosto de 2025

Livro O Cristo Cigano narra o sacrifício em nome da arte

 

Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen apresentam a busca de um escultor pela expressão da dor humana

Cristina Horta de AlmeidaBelo Horizonte

Livro que integra a lista da Fuvest 2026, "O Cristo Cigano" aborda a solidão do homem, implicando uma preocupação social ao problematizar a figura de Jesus Cristo a partir da beleza do oprimido. Aliando lenda a um apelo cristão, a história escrita por Sophia de Mello Breyner Andresen destaca o sacrifício do amor em nome da arte.

"O destino eram

Os homens escuros

Que assim lhe disseram:

– Tu esculpirás Seu rosto

de morte e de agonia."

(trecho do livro 'O Cristo Cigano')

A seguir, saiba mais sobre a obra.

QUEM É A AUTORA

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu em 1919, na cidade do Porto (Portugal), e morreu antes de completar 85 anos, em Lisboa. De família aristocrata, foi criada em uma casa integrada à natureza, passando suas férias de verão em Vila Nova de Gaia. O contato com casas, jardins e o mar contribuíram para uma compreensão da espacialidade, que viria a aparecer recorrentemente em suas obras.

Com uma educação cristã, Sophia não se limitou às regras religiosas. "Ela recusava fórmulas no cotidiano, na religião, na expressão artística. Valorizava a independência, a lucidez e a expressão", afirma Fabiana Miraz, doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela Unesp (Universidade Estadual Paulista). Em 1936, cursou a disciplina de filologia clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde estudou línguas clássicas, entre elas o grego, marcante em sua produção.

Sua projeção veio com a obra poética. Sophia estreou aos 14 anos nos "Cadernos de Poesia", revista que reuniu autores heterogêneos, como Jorge de Sena e Ruy Cinatti. Também escreveu ensaios e contos, passando pelas narrativas infantis após se casar e ter filhos. Tornou-se crítica do regime ditatorial salazarista estabelecido em 1933 e foi eleita deputada à Assembleia Constituinte em 1975, após a Revolução dos Cravos. "Ela aderiu ao processo de construção da democracia portuguesa, mas se desiludiu ao ver que a pós-revolução não concretizou a mudança que ela empregava em suas falas", relata Miraz.

Entre as premiações que obteve estão o Camões, em 1999, e o Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, em 2003.

A influência

Quando Sophia conheceu o poeta João Cabral de Melo Neto na Espanha, em 1958, logo surgiu uma grande afinidade. Tanto que, para a pesquisadora Clara Rocha, em publicação da Fundação Calouste Gulbenkian, de 1994, Sophia compôs um pastiche sobre o estilo de Melo Neto em "O Cristo Cigano", em 1961. Inspirado em uma lenda contada pelo amigo, o texto apresenta a sua forma precisa. "Por isso os versos mais curtos, o ritmo, as rimas marcadas. Mas é importante ressaltar que ela adequou a sua linguagem à do poeta", observa Miraz.

A lenda

Em Sevilha, ao buscar inspiração para talhar um Cristo crucificado, um escultor viu um belo cigano, conhecido como Cachorro, ser esfaqueado por um homem ciumento da esposa. A cena permitiu ao artista vislumbrar um rosto marcante em agonia. Como é comum na tradição oral, a lenda apresenta outra versão: obcecado pela imagem, o próprio artista resolveu assassinar o cigano para conhecer a face da dor. Sophia opta pela segunda narrativa para, então, contar poeticamente o mito por trás da escultura "Cristo de la Expiración", de 1682, produzida por Francisco Ruiz Gijón.

A narrativa

O escultor e o cigano são os personagens centrais, em uma narrativa dividida em 12 poemas que mostram o percurso de criação de uma obra de arte. O mote evidencia a homenagem feita a João Cabral de Melo Neto, apresentando uma faca como metáfora da linguagem: ela é instrumento que corta, mata e esculpe. Depois, 11 poemas numerados retratam a relação do escultor com o tempo e a arte, e o jogo entre claro e escuro. O escultor, então, é a claridade que, encantado pelo cigano, conhece as sombras ao matá-lo. "Sophia fala daquele que morre injustamente. É o cristianismo movido pelo amor ao desvalido", explica Flávio de Castro, professor de literatura do Colégio Determinante.

Dimensões reflexivas da dor

Para Rita Oliveira, professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), o diálogo entre a lenda e a poesia é ampliado para o sofrimento humano coletivo da época, retratado na figura do cigano. Afinal, o mundo ainda lidava com as consequências de duas guerras, seguidas pela consolidação de ditaduras. Houve um investimento nos conflitos em detrimento aos direitos sociais fundamentais, resultando em desemprego, fome, doenças e cerceamento das liberdades civis. Nesse sentido, a obra de Sophia é atravessada por uma crítica social, usando a poesia como meio de friccionar o real.


SÉRIE ABORDA OS LIVROS DO VESTIBULAR 2026 DA FUVEST

Este é o quinto de uma série de textos que abordam a lista de livros do vestibular da USP deste ano. Pela primeira vez, a Fuvest selecionou obras só de escritoras mulheres. A cada semana, uma obra é tema de reportagem que explica a trajetória da autora e os principais pontos que podem ser cobrados na prova.

Os textos fazem parte do projeto Folha Estudantes, criado para ajudar jovens na preparação para o Enem e outros vestibulares. 

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2025/08/livros-da-fuvest-o-cristo-cigano-narra-o-sacrificio-em-nome-da-arte-conheca.shtml

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