Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen apresentam a busca de um escultor pela expressão da dor humana
Cristina Horta de Almeida, Belo Horizonte
Livro que integra a lista
da Fuvest 2026,
"O Cristo Cigano" aborda a solidão
do homem, implicando uma preocupação social ao problematizar a figura
de Jesus
Cristo a partir da beleza do oprimido. Aliando lenda a um apelo
cristão, a história escrita por Sophia
de Mello Breyner Andresen destaca o sacrifício do amor em nome
da arte.
"O destino eram
Os homens escuros
Que assim lhe disseram:
– Tu esculpirás Seu rosto
de morte e de
agonia."
(trecho do livro 'O
Cristo Cigano')
A seguir, saiba mais
sobre a obra.
QUEM É A AUTORA
Sophia de Mello Breyner
Andresen nasceu em 1919, na cidade do Porto (Portugal), e morreu antes de
completar 85 anos, em Lisboa.
De família aristocrata, foi criada em uma casa integrada à natureza, passando
suas férias de verão em Vila Nova de Gaia. O contato com casas, jardins e o mar
contribuíram para uma compreensão da espacialidade, que viria a aparecer
recorrentemente em suas obras.
Com uma educação cristã,
Sophia não se limitou às regras religiosas. "Ela recusava fórmulas no
cotidiano, na religião, na expressão artística. Valorizava a independência, a
lucidez e a expressão", afirma Fabiana Miraz, doutora em Literaturas de
Língua Portuguesa pela Unesp (Universidade Estadual
Paulista). Em 1936, cursou a disciplina de filologia clássica na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa,
onde estudou línguas clássicas, entre elas o grego, marcante em sua produção.
Sua projeção veio com a
obra poética. Sophia estreou aos 14 anos nos "Cadernos de Poesia",
revista que reuniu autores heterogêneos, como Jorge de Sena e Ruy Cinatti.
Também escreveu ensaios e contos, passando pelas narrativas infantis após se
casar e ter filhos. Tornou-se crítica do regime ditatorial salazarista
estabelecido em 1933 e foi eleita deputada à Assembleia Constituinte em 1975,
após a Revolução
dos Cravos. "Ela aderiu ao processo de construção da democracia
portuguesa, mas se desiludiu ao ver que a pós-revolução não concretizou a
mudança que ela empregava em suas falas", relata Miraz.
Entre as premiações que
obteve estão o Camões, em 1999, e o Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, em
2003.
A influência
Quando Sophia conheceu o
poeta João
Cabral de Melo Neto na Espanha, em 1958, logo surgiu uma grande
afinidade. Tanto que, para a pesquisadora Clara Rocha, em publicação da
Fundação Calouste Gulbenkian, de 1994, Sophia compôs um pastiche sobre o estilo
de Melo Neto em "O Cristo Cigano", em 1961. Inspirado em uma lenda
contada pelo amigo, o texto apresenta a sua forma precisa. "Por isso os
versos mais curtos, o ritmo, as rimas marcadas. Mas é importante ressaltar que
ela adequou a sua linguagem à do poeta", observa Miraz.
A lenda
Em Sevilha, ao buscar
inspiração para talhar um Cristo crucificado, um escultor viu um belo cigano,
conhecido como Cachorro, ser esfaqueado por um homem ciumento da esposa. A cena
permitiu ao artista vislumbrar um rosto marcante em agonia. Como é comum na
tradição oral, a lenda apresenta outra versão: obcecado pela imagem, o próprio
artista resolveu assassinar o cigano para conhecer a face da dor. Sophia opta
pela segunda narrativa para, então, contar poeticamente o mito por trás da
escultura "Cristo de la Expiración", de 1682, produzida por Francisco
Ruiz Gijón.
A narrativa
O escultor e o cigano são
os personagens centrais, em uma narrativa dividida em 12 poemas que mostram o
percurso de criação de uma obra de arte. O mote evidencia a homenagem feita a
João Cabral de Melo Neto, apresentando uma faca como metáfora da linguagem: ela
é instrumento que corta, mata e esculpe. Depois, 11 poemas numerados retratam a
relação do escultor com o tempo e a arte, e o jogo entre claro e escuro. O
escultor, então, é a claridade que, encantado pelo cigano, conhece as sombras
ao matá-lo. "Sophia fala daquele que morre injustamente. É o cristianismo
movido pelo amor ao desvalido", explica Flávio de Castro, professor de literatura do
Colégio Determinante.
Dimensões reflexivas da
dor
Para Rita Oliveira, professora do
Programa de Pós-Graduação em Letras da UFAM (Universidade Federal do Amazonas),
o diálogo entre a lenda e a poesia é ampliado para o sofrimento humano coletivo
da época, retratado na figura do cigano. Afinal, o mundo ainda lidava com as
consequências de duas guerras,
seguidas pela consolidação de ditaduras. Houve um investimento nos conflitos em
detrimento aos direitos sociais fundamentais, resultando em desemprego,
fome, doenças e cerceamento das liberdades civis. Nesse sentido, a obra de
Sophia é atravessada por uma crítica social, usando a poesia como meio de
friccionar o real.
SÉRIE ABORDA OS LIVROS
DO VESTIBULAR 2026
DA FUVEST
Este é o quinto de uma
série de textos que abordam a lista de livros do vestibular da USP deste ano.
Pela primeira vez, a Fuvest selecionou obras
só de escritoras mulheres. A cada semana, uma obra é tema de reportagem que
explica a trajetória da autora e os principais pontos que podem ser cobrados na
prova.
Os textos fazem parte
do projeto
Folha Estudantes, criado para ajudar jovens na preparação para o Enem e
outros vestibulares.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2025/08/livros-da-fuvest-o-cristo-cigano-narra-o-sacrificio-em-nome-da-arte-conheca.shtml
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