sábado, 18 de janeiro de 2020

O colonialismo e as políticas persecutórias contra as comunidades ciganas


O Bairro das Pedreiras, em Beja, Portugal, é um dos locais mais excluídos de Portugal e na Europa: não há água nem eletricidade para cerca de 300 pessoas ciganas

O heterogêneo e rico universo cigano converge no mundo ocidental como o seu outro, sendo refratado no senso comum ou no imaginário social como uma unidade genérica que oculta uma complexidade enorme de diferentes culturas, identidades, línguas e saberes. Não será possível reconstruir uma história unificada e homogênea das comunidades ciganas, em nível mundial, em Portugal ou no Brasil. 

Até porque os ciganos não possuem uma história escrita. É no marco da oralidade, entre mitos, ritos e no aprendizado social e cultural que registram tradições, conhecimentos, valores, saberes e bens culturais, transmitindo-os de geração em geração há milênios. Como sabemos o tempo da história oral, mitológico, funciona sob a lógica cíclica, diferentemente do tempo cronológico da história escrita, que é linear.

As pessoas ciganas não se interessam pela história escrita ou demonstram "interesse em saber onde viveram seus antepassados" (Moonen, 2011, p. 11). Andrade Jr. (2013 p. 98) realça que a falta de uma história contada pelos próprios, "dificultou e continua causando problemas na análise sobre sua história e suas práticas sociais". Durante séculos os registros foram feitos por não-ciganos, expressos em crônicas, legislações, registros policiais, textos jornalísticos e relatos de religiosos. 

Na maioria das vezes estereotipados, proliferaram lendas e folclorização, com representações literárias e midiáticas que mantiveram e reforçaram preconceitos, discriminação, desigualdades e exclusões. "A imprensa, as leis e em boa parte as artes têm contribuído para o processo de desqualificação e por conseguinte, a exclusão de grupos ciganos espalhados pelo mundo, o que constatamos também no Brasil" (Miranda, 2011, p. 110).

A relação entre ciganos e não-ciganos no ocidente sempre foi de embates e conflitos, vivendo no "fio da navalha" (Andrade Jr, 2008): na pior das hipóteses entre a exclusão e o extermínio e, na melhor, numa integração subordinada, marcada por inclusão desigual, padronização cultural e apagamento de saberes (Santos, 2002). Tal ocultamento, tem sido corroborado pela ciência moderna. Argumenta Moonen (2011), que somente a partir do século XVIII foram publicados os primeiros livros sobre as comunidades ciganas. De fato, a ciganologia europeia e brasileira foram anticiganas.

Os dados históricos até hoje disponíveis sobre ciganos no Brasil são comprovadamente poucos, porque, até recentemente, os historiadores brasileiros nunca deram a mínima importância para a História Cigana. O pior, no entanto, é que, quando existem pesquisas históricas, se trata de dados enviesados, distorcidos pela visão etnocêntrica (Moonen, 2011, p. 125).

A historiografia ou a etnografia cigana realizada pela ciência moderna - baseada numa visão eurocêntrica, não consegue conceber formas diferentes de ver e viver sem excluí-las ou canibalizá-las. Os pesquisadores que os estudaram na Europa ou no Brasil até meados do século XX, contribuíram para reforçar e/ou construir estereótipos. Há um vácuo nos estudos sobre o tema no Brasil, o que talvez explique a dificuldade em reconstruir uma história cigana no país. 

O primeiro livro publicado é de 1886: “Os Ciganos no Brasil e Cancioneiros dos Ciganos” de Mello Moraes. Depois, foi publicada em 1936 a obra “Os ciganos do Brasil. Subsídios históricos, ethnográficos e lingüísticos”, de José de Oliveira China (Moonen, 2011). Após este, o próximo trabalho aparece só em 1972, com a dissertação de Maria Luiza sant’Ana, que realizou uma etnografia com uma comunidade Rom de Campinas (Souza, 2013, p. 37).

Souza (2013, p. 34) pontua que “ciganologia” nasceu estando vinculada ao orientalismo, ao modo como Edward Said propõe. Os estudos ciganos nasceram na Inglaterra com a criação da “Gypsy Lore Society” (1880). Mas desde o princípio, tornou-se um canal de difusão, debate e legitimação de um conhecimento que produzia o cigano com o outro, ao modo como o discurso europeu produzia o oriental como o outro. Não por acaso, nesta época surge a teoria de que os ciganos, eram indianos, afinal, só podiam ser párias, emigrados da Índia.

Rodrigo Teixeira (2008, p. 06 e 07) enfatiza que a história desses grupos é feita "de exceções, impossibilidades, incongruências e contra-sensos". As condições espaciais e temporais que cada grupo, tende a individualizá-los em microuniversos. Baseados nas autodenominações dos próprios ciganos, estudos acadêmicos têm afirmado existir três grandes grupos: os Kalon, os Rom e os Sinti, com distintos subgrupos (Moonen, 2011). Mas esses troncos, se manifestam de maneiras diferentes a depender dos países onde estejam, com culturas e modos de ver o mundo distintos, além de estarem em temporalidades diversas em suas relações de integração/exclusão nas sociedades nacionais/locais.

Toda história dos ciganos é, na verdade, uma viagem nas línguas, nas estéticas, nas políticas anti-vagabundos e anti-artistas, nas religiões, nas concepções de mundo, com os quais vários grupos ciganos, sucessiva e contraditoriamente, tiveram contato. Nisso a universalidade dos ciganos se manifesta. Dito isto, ressalta-se que as diferenças e a diversidade entre os ciganos não impedia que houvesse solidariedade (Teixeira, 2008, p. 12).

Deste modo, não será possível reconstruir uma historiografia unificada dos povos ciganos, mas sim reconstruir como os estados e nações ocidentais, incluído Brasil e Portugal, se comportaram ao longo do tempo no tratamento com os grupos ciganos a partir da criação e aplicação de políticas colonialistas para regular e controlar essas comunidades e que, de uma forma geral, podem ser divididas em dois momentos:

1) Um longo período de aplicação de políticas persecutórias e anticiganas expressas pelas mais diversas formas de violência física como genocídios e extermínios, prisões, torturas, escravidão, castigos corporais, a separação forçada de famílias com sequestros de crianças, e formas de violências simbólicas, a exemplo das proibições de falar a língua (linguicídio), praticar costumes como usar as roupas tradicionais e viver em bando (identidadecídio), o apagamento de saberes (epistemicídios) ou a padronização cultural via estereotipação e estigmatização, inferiorização, dominação, racismo e desigualdades. Foram vítimas do colonialismo português duplamente. Essas políticas foram apoiadas pelas populações majoritárias, tanto que permanece no imaginário brasileiro e português as imagens dos ciganos perigosos, que roubam, que trapaceiam, mentem e enganam. Muitas continuam, ainda que disfarçadas de outras formas, como o isolamento em guetos, vez por outra, exterminadoras (Silva Júnior, 2018; Silva Júnior e Araujo, 2015).

2) E um segundo período, muito recente, com a emergência dos direitos humanos pós II guerra mundial em que estados ocidentais começaram a desenvolver políticas de integração. Um movimento que se concretizou na Europa a partir de 1969, quando o conselho europeu publicou a recomendação 563 reforçando aos Estados membros a necessidade de reconhecer as comunidades ciganas como minorias étnicas e considerando-as como um problema de desenvolvimento humano a ser revolvido. E, mundialmente, a partir de 1978 quando a ONU formulou uma resolução exortando os países a garantir-lhes os mesmos direitos de outros cidadãos não-ciganos; e 1979, quando reconheceu a União Internacional Romani como a ONG que representa os ciganos junto ao órgão, tendo status consultivo (Silva Júnior, 2018; Silva Júnior e Araujo, 2015).

Em Portugal e Brasil, essas recomendações só começaram a ser aplicadas com a implantação de políticas de inclusão social, a partir da redemocratização de ambos os países. Mas isso já é assunto para um outro texto.

Por Aluízio de Azevedo
Assessoria de Comunicação da AEEC-MT
Referências Bibliográficas

ANDRADE-JR, L. Os ciganos e os processos da Exclusão. Revista Brasileira de História. Vl. 33, N. 66, p. 95-112, São Paulo: 2013

MIRANDA, F. F. F. As Representações dos Ciganos no Cinema Documentário Brasileiro. Dissertação (Mestrado – Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.

MOONEN, F. Anticiganismo: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife, PE: 2011. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/1_fmanticiganismo2011.pdf

SANTOS, B.S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 4a. São Paulo: Ed. Cortez, 2002.

SILVA JÚNIOR, Aluízio de Azevedo. Produção Social de Sentidos em Processos Interculturais de Comunicação e Saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal. (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, 2018.

SILVA JÚNIOR, A. A. e ARAUJO, I. S. Vigilância, controle e políticas públicas de saúde para ciganos: reflexões sobre desigualdade e exclusão. In: COLÓQUIO SEMIÓTICA DAS MÍDIAS, Vol. 6, 1, 2015. Jarapatinga (AL): Centro Internacional de Comunicação e Semiótica. UFAL, 2015. Disponível em: <http://ciseco.org.br/anaisdocoloquio/index.php/edicao-atual/187-acoes-entre-atores-analise-sobre-formas-de-interacao-online-em-uma-pagina-oficial-de-uma-instituicao-de-ensino-26>.

SOUZA, M. A. Ciganos, Roma E Gypsies: Projeto Identitário E Codificação Política No Brasil E Canadá. Tese (Doutorado) – Departamento de Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.

TEIXEIRA, R. C. (2008). "História dos Ciganos no Brasil". Núcleo de Estudos Ciganos, Disponível em www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/ciganos02html, Consultado em 15.3.2014]

Nenhum comentário:

Postar um comentário