Governo federal lança
plano para garantir direitos dos ciganos, mas representantes de diferentes
etnias denunciam falta de ações efetivas. Foto: Karen Ferreira
Por Micael
Olegário | ODS 10
Publicada em 18 de
outubro de 2024 - 09:28 • Atualizada em 18 de outubro de 2024 - 19:39
“É muito injusto o que
acontece”. A frase é da fotógrafa Rosecler Winter, 61 anos,
mais conhecida como Rose, moradora de São Leopoldo, região metropolitana de
Porto Alegre. O sentimento de injustiça está atrelado ao cotidiano de
preconceitos e marginalização vivenciado pelos povos ciganos no Rio Grande do
Sul. Uma rápida pesquisa do verbo “ciganear” em um dicionário permite
compreender a profundidade dos pré-conceitos que afetam as etnias ciganas no
Brasil. Entre as diferentes definições da palavra estão levar uma vida errante
e agir com falsidade.
Descendente de imigrantes
alemães, Rose pertence à etnia Sinti, um dos três principais ramos dos povos
ciganos no país. A profissão de fotógrafa é uma herança do pai, Nilo Iloire
Winter. Legado que também transmitiu ao filho Kim Winter Flores. Para ela, ser
cigana é ter que enfrentar olhares de desconfiança constantes. Nos últimos
anos, ela foi levada a fechar seu estúdio e perdeu muitos clientes. O motivo: a
descoberta de sua origem cigana.
“O cigano é rotulado, não
importa a etnia. No momento que sabem que tu é (cigana), a pessoa perde a
amizade, perde o trabalho O estúdio fotográfico aqui que é uma coisa de
família, já tinha mais de 50 anos, quando foi em 2014, eu tive que fechar”,
descreve Rose Winter. Em um dos piores episódios de ódio e preconceito, ela
conta ter sido atacada por um grupo de skinheads nazistas
perto dos trilhos do Trensurb, em Porto Alegre: “Eles tentaram me jogar nos
trilhos do trem chegando e fui salva por um casal LGBT+”.
Não estamos nas estatísticas do SUS e da educação. Estamos completamente invisibilizados e o Estado, durante anos e anos, só aplicou políticas persecutórias, racistas e violentas. Não quis saber de cigano. Aluízio de Azevedo, Pesquisador e produtor cultural da etnia Calon
Em agosto deste ano, o
Ministério da Igualdade Racial (MIR) lançou o Plano
Nacional de Políticas para Povos Ciganos. Entre os objetivos do decreto,
está o combate ao anticiganismo, o reconhecimento da cultura e
dos modos de vida dos ciganos, além da elaboração de políticas públicas para
garantir os direitos dessa parcela da população brasileira.
Apesar de representar uma
conquista política para os movimentos dos povos ciganos, o documento tem sido
alvo de críticas pelo pouco detalhamento e a ausência de medidas práticas. “Esse
plano foi criado e construído sem qualquer diálogo com os povos ciganos, foi
imposto de cima para baixo. É um plano que, se você for olhar, é uma vergonha
do ponto de vista da construção, porque tem duas páginas. Na área da saúde, que
é onde eu pesquisei, tem uma única linha”, lamenta Aluízio de Azevedo,
pesquisador e produtor cultural pertencente à etnia Calon.
Doutor em Informação e
Comunicação em Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Aluízio aponta que o
decreto sequer menciona os resultados das ações do programa Caravana Brasil
Cigano, série de encontros de escuta com ciganos de diferentes regiões do Brasil
promovidos pelo MIR.
Integrante da Associação
Estadual das Etnias Ciganas do Mato Grosso e do coletivo “Ciganos Juntos Somos
Mais Fortes”, o pesquisador descreve a dificuldade em alcançar medidas efetivas
para atender às necessidades dos povos ciganos. Uma delas é a carência de dados
atualizados sobre a população cigana no Brasil. Estimativas do IBGE de 2011
indicavam entre 800 mil a um milhão. O Censo 2020 não investigou esse recorte
da população brasileira.
“A gente também não está
na história oficial, nos livros didáticos ou nos currículos escolares. Não
estamos nas estatísticas do SUS e da educação. Estamos completamente
invisibilizados e o Estado, durante anos e anos, só aplicou políticas
persecutórias, racistas e violentas. Não quis saber de cigano”, complementa
Aluízio, natural de Tangará da Serra (MT).
Origem e perseguição
No Brasil, as principais
etnias ciganas são Rom, Calon e Sinti, entre essas ainda existem
diversos subgrupos, clãs e nações. Uma das imagens mais comuns associada a
esses povos é a da itinerância. Porém, atualmente nem todas as etnias mantêm
essa tradição, muitos já estabeleceram residência fixa, principalmente entre os
Rom. Ser cigano também não tem nada a ver com uma crença religiosa, mas sim com
a descendência: só é considerado cigano quem possui mãe e pai ciganos.
A origem desses povos é
controversa, porém, a versão mais aceita é de que teriam surgido na região da
Índia. Com o passar dos anos, os ciganos se espalharam por outros territórios
do Oriente Médio e Europa – até chegar nas Américas no período colonial, na
maioria dos casos expulsos e deportados de países como Portugal, França,
Itália, Espanha e Alemanha.
Professor e mestre em
Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Sandro
Rista explica que a itinerância dos ciganos nunca foi apenas uma escolha, ainda
que tenha sido incorporada na cultura desses povos. Ainda segundo ele, a resistência
de interagir socialmente de algumas etnias ciganas está ligada a séculos de
perseguição.
Eles acham que vão roubar na cidade deles ou que querem tomar a terra de alguém, são vários os preconceitos e em algumas cidades não tem diálogo nenhum. Núbia Ribas, Produtora cultural e descendente de Calon
Em Minas Gerais, entre o
final do século XIX e início do século XX, ciganos eram perseguidos pela
polícia e obrigados a fugir de seus acampamentos, episódio que ficou conhecido
como as “Correrias
Ciganas”. Durante a Segunda Guerra Mundial, estima-se que entre 250 a
500 mil ciganos tenham sido mortos em campos de concentração nazistas, no que
se define como “Porajmos” (devorar na língua Romani) ou Holocausto Cigano.
“A gente vê uma falta de
critério das pessoas para com ciganos. Falta até uma humanização com os
povos ciganos no geral. E talvez isso se resolva no momento em que as
pessoas conhecerem os costumes e as tradições. Conhecerem as perseguições
históricas”, argumenta Sandro Rista, que faz parte da etnia Rom e atua como
professor de História em uma escola pública do município de São Francisco de
Assis (RS).
De acordo com Aluízio de
Azevedo, entre os resultados desse histórico de marginalização, os ciganos
acabaram excluídos de discussões sobre habitação e da organização da vida nas
cidades, justamente também por conta da itinerância. “Fomos excluídos da divisão
do território nacional, assim como outros povos e outras pessoas pobres”,
comenta o pesquisador, que compara essa situação com a dos povos indígenas, que
possuem origens ligadas à itinerância.
Rose Winter descreve o ódio e preconceito enfrentado pelos ciganos; na esquerda, em evento de lançamento do plano para os povos ciganos, na foto da direita, Rose ao lado do filho Kim (Foto: Arquivo Pessoal)
Anticiganismo e
diversidade
Descendente de ciganos
Calon e produtora cultural em Charqueadas (RS), Núbia Regina Ribas descreve os
desafios enfrentados por grupos que seguem itinerantes para montar seus
acampamentos em cidades gaúchas – os Calon são a principal etnia que preserva a
tradição da itinerância. “Está cada vez mais difícil eles conseguirem espaços
para acampar nos municípios, mesmo com as portarias que já existem”, enfatiza
Núbia.
Durante a pandemia de
Covid-19, Núbia relata que muitas organizações voluntárias negaram ajuda ao
descobrir que seria destinada para ciganos. Durante alguns anos, ela fez parte
do Instituto Cigano do Brasil e atualmente atua com a Rede Brasileira dos Povos
Ciganos (RBPC), na defesa dos direitos e políticas públicas para grupos Calon.
Núbia também critica o
plano elaborado pelo MIR e que, segundo a ativista, desconsidera a realidade e
as necessidades particulares de cada etnia em seu contexto. Além disso, ela vê
com desconfiança novas legislações, uma vez que, as atuais políticas são desrespeitadas
pelos municípios, como a portaria
n°4.384/2018 que instituiu normas para os atendimentos de saúde aos
ciganos. “Eles acham que vão roubar na cidade deles ou que querem tomar a terra
de alguém, são vários os preconceitos e em algumas cidades não tem diálogo
nenhum”, pontua.
Na visão de Aluízio de
Azevedo, para que as políticas públicas para os povos ciganos sejam efetivas, é
necessário haver a circulação e apropriação pelos diferentes movimentos e
etnias. “Os calons têm um estilo de vida, os Rom têm outro. Então,
é importante reconhecer, saber diferenciar, entender que são culturas
diferentes”, destaca o pesquisador.
Desde que assumiu o cargo
de professor, Sandro Rista afirma nunca ter sido discriminado por um estudante.
Por outro lado, enfrentou problemas como uma colega docente que somente o
chamava de cigano, nunca pelo nome, mesmo dentro da escola e na presença dos
alunos. “Onde ela me via, se fosse na rua ou dentro da escola, era só cigano.
Eu pedi: ‘olha, colega a gente trabalha junto, quando a gente tá fora da escola
e quer me chamar de cigano, tudo bem. Mas, aqui dentro da escola, ou pelo nome
ou por professor, para não gerar problema com os alunos’”, relata ele.
Sandro admite que o
problema não está na palavra em si, mas nos estereótipos construídos em torno
dos ciganos, como a trapaça e o roubo. Esses discursos e as práticas de ódio
atreladas a eles fazem com que muitos prefiram esconder sua origem, para evitar
ataques como o sofrido pela fotógrafa Rose Winter.
“Tem bastante ciganos
aqui que não se reconhecem, preferem se dizer alemães para não ter o problema
do preconceito”, descreve Rose sobre a realidade de São
Leopoldo, cidade conhecida como berço da colonização alemã no Rio Grande do
Sul. No estado, a maioria das etnias ciganas estão concentradas em cidades de
fronteira com a Argentina e Uruguai, sendo considerados povos
tradicionais do bioma Pampa.
Aluízio, esquerda, em uma das gravações do filme Caminhos Ciganos; produção audiovisual é alternativa para preservar cultura (Foto: Rodrigo Zaiden)
Oralidade, cultura e
artes visuais
Presidente da Associação
Cigana Itinerante do Rio Grande do Sul e gestora do Comitê dos Povos
Tradicionais do Pampa, Rose conta que a maioria dos Sinti no Rio Grande do Sul
sempre esteve ligada às artes, incluindo muitos grupos de ciganos circenses.
Apesar disso, poucos circos se identificam dessa forma. “É triste, mas se as
pessoas sabem que aquele circo é de cigano, eles não vão entrar (no
município)”, explica a fotógrafa.
Rose conta que durante
muitos anos também viajou por diferentes estados e países vizinhos, como
Argentina e Uruguai. Desde os 14 anos também faz leitura da sorte, uma das
características culturais das ciganas, junto das danças, como a Rumba
Gitana, Ghawaze, Rom e Khalbelia, marcadas pela alegria e mistura de diferentes
elementos.
Os vestidos e o uso de
metais preciosos, inclusive nos dentes, são outros aspectos que compõem a
cultura dos povos ciganos. Núbia Ribas ressalta, contudo, que existem
diferenças no poder aquisitivo de cada grupo e etnia, o que interfere nos
acampamentos e nas vestimentas. “As ciganas que tem um poder aquisitivo maior,
elas estão sempre vestidas com os vestidos mais de festa. Já as ciganas que não
tem tanto poder aquisitivo vão usar uma saia mais simples”, acrescenta.
Na culinária, a
simplicidade é valorizada e é acompanhada de diferentes temperos e ervas
medicinais, fruto também de uma relação próxima com a natureza e da valorização
do benzimento. Outra marca das tradições ciganas é a oralidade. A maioria das
línguas e dialetos ciganos são ágrafos, como o Romani, idioma dos Rom, e o
Chib, falado pelos Calon.
A maioria desses
elementos das culturas ciganas estão registrados em produções audiovisuais como
a série “Diva
e as Calins de MT”, produção da Associação Estadual das Etnias Ciganas de
Mato Grosso, dirigida por Aluizio de Azevedo. Segundo o produtor cultural
Calon, os documentários e filmes têm sido uma das alternativas para evitar a
perda de tradições, um desafio encarado por diferentes culturas orais.
“É uma cultura milenar
que enriquece a nossa diversidade brasileira. Muitas das
características culturais do brasileiro que se atribuem aos portugueses, de
verdade, são dos ciganos. Por exemplo, se você pensar a moda de viola, o
sertanejo, isso é um traço muito característico dos calons”, ressalta Aluízio.
Uma das produções audiovisuais recentes do produtor cultural é o filme “Caminhos Ciganos”,
que também documenta a presença de ciganos em diferentes localidades do Brasil
e de Portugal.
Segundo Aluízio, esses
movimentos permitem começar a quebrar barreiras entre os ciganos e não ciganos.
“É uma construção histórica que vai se desenhando. Antes também os casamentos
eram muito mais endogâmicos. Hoje já tem muito mais pessoas ciganas casando com
não ciganas. Tem muito mais ciganos frequentando a escola, com acesso à
educação”, complementa o pesquisador e ativista.
Entre os depoimentos de
Aluízio, Sandro, Núbia e Rose, ecoam as mazelas e os preconceitos que afetam os
povos ciganos no Rio Grande do Sul e no Brasil. Do mesmo modo, transparece a
diversidade e a riqueza cultural das diferentes etnias e de suas tradições,
relegadas a uma posição subalterna na história do Brasil, justamente o país que
possivelmente teve o único presidente descendente de ciganos, Juscelino
Kubitschek (1956-1961).
Disponível em: https://projetocolabora.com.br/ods10/povos-ciganos-resistem-apesar-do-preconceito-e-da-marginalizacao/