terça-feira, 12 de outubro de 2021

Ensaio: Globalização, ou a substituição da mandala pelo caleidoscópio

Ensaio publicado originalmente no E-book "Olhares sobre Educação" uma obra da Editora do Ministério da Saúde. 

Obra acima, Mandala das Minorias, que abre a capa do livro, é de autoria de Aluízio de Azevedo, que também assina este ensaio

Resumo

Apresento neste ensaio a metáfora da substituição da mandala pelo caleidoscópio para refletir sobre as opressões causadas pela globalização neoliberal aos povos não-europeus, incluindo aí as comunidades ciganas, em seu eixo civilizacional-cultural. Evidencio que as comunidades ciganas não sofreram essas violências simbólicas sem lutar. Exemplifico tal cenário apresentando a “tática do coringa”, uma categoria discursiva anticolonial criada pelas pessoas romani para se manterem enquanto culturas distintas, mantendo filosofia e modos de organização próprios, que confrontam os valores de vida ocidentais.

Palavras-chave: Ciganos. Decolonização. Comunicação e Saúde.


1. Entre táticas e metáforas: a decolonização da saúde cigana

Esse texto nasce como uma continuidade das reflexões que teci para ser mediador da mesa “Educação e Saúde Pública para Minorias: como desenvolver uma sociedade plural e inclusiva”, que abriu o Ciclo de Debates “Olhares sobre Educação”. O evento foi organizado pela Área de Ensino e Pesquisa do Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE) e ocorreu no dia 10 de setembro de 2020. Nesse contexto, me foi dada a possibilidade de aprofundar o debate sobre as comunidades ciganas. Após muito refletir, pensei que este seria um espaço apropriado para debater sobre a decolonização no campo da comunicação e saúde para as “minorias”, tendo como foco as comunidades ciganas.

O farei partindo de uma metáfora que construí na tese de doutorado para compreender o atual cenário de opressão civilizacional-cultural do ocidente para com todos os povos não-europeus, incluindo os povos romani. E também o conceito de “Tática do Coringa”, para representar uma das táticas que as comunidades ciganas colocaram em prática para não serem assimiladas ou destruídas. Esta construção se deu a partir de um arranjo epistemológico que se ancorou em quatro matrizes teórico-metodológicas: os estudos culturais, os estudos semiológicos, os estudos decoloniais e a filosofia cigana.

Tal arranjo proporcionou a construção de um saber compartilhado junto ao movimento e comunidades ciganas, valorizando suas vozes, olhares e conhecimentos, que foram silenciados ou invisibilizados pelas sociedades ocidentais e a ciência hegemônica. Os processos de invisibilidade/hipervisibilidade negativa (estereótipos, estigmas, nomeações, etc.) e as políticas de silenciamento foram duas das principais estratégias utilizadas pelo colonialismo e capitalismo para a exclusão da filosofia de vida e os sistemas de ação e organização Calon (também pode ser escrito “Kalon” ou “Calom” é um dos três grandes troncos étnicos ciganos. Os outros dois troncos étnicos são os Rom e os Sinti) e desqualificações das comunidades e pessoas ciganas.

2. A substituição da mandala pelo caleidoscópio

Na aula magistral ministrada em 19 de abril de 2017, na Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos destacou que vivemos um tempo de transição paradigmática; oportuno para a ocorrência de monstruosidades sociopolítica-econômicas. Segundo ele, essas monstruosidades se expressam por meio da aplicação da violência física; e acrescento que também por meio da aplicação de violências culturais-civilizacionais.

Para representar sinteticamente a esses processos opressores simbólicos, utilizo a mandala, uma representação geométrica oriental e o caleidoscópio, um aparelho óptico. Simbolicamente, o atual estágio da sociabilidade global, imposta pelo colonialismo/capitalismo, mais conhecido como globalização, está trocando a mandala pelo caleidoscópio. A mandala é uma arte de diversas culturas orientais, como hindus e budistas, sendo construídas em variadas formas, tamanhos e cores, dispostas ou não de maneira simétrica a conformar um círculo em expansão que pode ser ampliado infinitamente.

Introduzida no ocidente nas obras de Jung, para representar a totalidade do self e da psiquê, em sânscrito, mandala significa círculo e simboliza a unidade nas alteridades. Sendo aberta e expansiva, sai dos dualismos e acolhe a todos os elementos, ainda que diversos. Tem fundo artístico espiritual, de respeito mútuo e reconhecimento. Interliga sem descaracterizar e é entendida como resumo da manifestação espacial do divino, uma síntese da imagem do mundo. Também simboliza as leis que governam o cosmos e às quais estão submetidas a humanidade e a natureza, agregando inclusive o caos.

Já o caleidoscópio, criado pelo físico escocês Dawid Brewster, é realizado com um tubo cilíndrico, que mantém uma pequena abertura em um apenas um dos lados, sendo conformado por espelhos internos e pedras multicoloridas de vidro. Os espelhos são arranjados de uma forma que se autorrefletem e conforme são viradas formam múltiplas figuras, dando a impressão que são diferentes. Porém, sempre se limitam a um número específico de vezes que as pedras são giradas, modificando o modo como são refletidas.

Esse aparelho dá a sensação de estar sempre em movimento, conformando novas figuras. Todavia, está girando em torno de si mesmo e nunca permite configurações completamente diferentes das que ali são combinadas. Uma ilusão ótica, limitada aos reflexos e a quantidade de giros do aparelho e a combinação do jogo dos espelhos, que parece infinito, mas é ordenado, encaixando o olhar em ilusões, ainda que belas.

Nesta metáfora, a globalização liberal é uma estratégia do ocidente, assemelhada ao caleidoscópio, que se constitui de uma parte trânsfuga do oriente, representado pela mandala, buscando substitui-lo enquanto matriz fundadora civilizacional, totalizante e antidicotômica, que abarca uma multiplicidade de tempos e mundos - entre eles o ocidente (SANTOS, 2010). De fato, o ocidente nunca se transformou num centro alternativo ao oriente, mas tenta se impor aplicando “a produtividade e a coerção legítima”. Processos que se dão principalmente pela adoção de um padrão pela ciência e arte modernas obcecadas pela “razão metonímica” e o conceito de totalidade sob forma de ordem.

Para a visão científica moderna, toda compreensão não pode ser pensada sem um todo, que tem soberania sobre as partes, sendo que essas últimas jamais podem destituir o todo (SANTOS, 2010). O saber científico ocidental e a mídia são espécies de caleidoscópios. Autorrefletidos como espelhos, acabam girando em torno de si mesmos, proporcionando diferentes configurações, algumas muito belas, mas sempre enquadradas dentro de um mesmo formato. Uma das experiências mais claras das relações dessa configuração ocorre na persistência da colonização epistemológica, da reprodução dos estereótipos e formas de discriminação, que são como pulsões escópicas do outro como espelho de si mesmo, que tolera a diversidade, a integrando para devorar ou o excluir.

3. A Tática do Coringa

Entretanto, o oriente e as pessoas ciganas não sofreram esses processos sem lutar. Para combatê-los, resistindo enquanto identidades culturais e mantendo estilos de vida próprios confrontando modos ocidentais, desenvolveram a “tática da carta do coringa”. Uma referência aos jogos de baralho, pensada do ponto de vista do discurso, a tática do coringa envolve hibridação, camuflagem e mimese. A capacidade, adaptabilidade e maleabilidade cultural e sócio-organizacional, que se fundamenta na articulação de saberes tradicionais; com conhecimentos modernos e pós-modernos de ativistas e pessoas ciganas, inclusive midiáticos e científicos, que nos permitiu resistir como comunidades distintas aos avanços da colonização/globalização, ora na construção de identidades miméticas, ora contrastivas.

Enquanto a sociedade ocidental aplicava a estratégia da substituição da mandala pelo caleidoscópio como totalidade do mundo, por meio dos processos de silenciamento, linguicídios, invisibilidade (identidadecídios, apagamento de saberes) e hipervisibilidade negativa (padronização cultural desqualificações por meio de racismos, estereótipos e estigmatizações e inferiorizações); nomeando e classificando toda uma rica alteridade como o genérico “ciganos”, oco e sem vida, demonizado, um reflexo mal refletido de si mesmo, mas projetando todas as suas frustrações e recalques, ódios e rancores; as pessoas ciganas jogam com esse genérico, desenvolvendo táticas de hibridação e mímica.

O coringa se encaixa em todas as posições, podendo compor pares e opostos. Ele pode simbolizar a todas as outras cartas, porém continua sendo o que é: um coringa e não as outras cartas. Tem o poder de assumir todas as composições em um jogo, valendo o que qualquer carta vale, substituindo-a, sem perder seu valor próprio ou a capacidade de simbolizar uma carta diferente noutra composição. Todo coringa é único, nunca um é igual a outro, o que equivale a fórmula nenhum ser humano é igual ao outro.

Diz Bakhtin (2002) que o homem (ou mulher) nunca coincide consigo mesmo (a). A ele (a) não se pode aplicar a fórmula de identidade de A é idêntico (a) a B. E isso simboliza a inconclusividade do ser, compreendendo os lugares de interlocução e identidades culturais que nos são atribuídos, aos quais negociamos dentro de uma elipse que esse genérico permite. Militantes ciganos utilizam a estratégia da invisibilidade, da visibilidade e da hipervisibilidade, como elementos de negociação, articulados a outros fatores, para fortalecer os seus lugares de interlocução.

Um exemplo comunicacional dessa tática são as articulações que o movimento cigano realiza junto a veículos da mídia tradicional, para atuar divulgando informações ou notícias acerca das culturas e identidades ciganas, além de suas demandas políticas e sociais. Ou utilizam as redes sociais para o mesmo fim, além de denunciar racismos e opressões. Há inclusive uma disputa entre as várias associações ciganas em torno da visibilidade própria de cada instituição. 

Outro exemplo científico é o meu caso, que propus esse diálogo de forma acadêmica, como pesquisador do meu próprio universo cultural, em que a carta do coringa se expressa nas múltiplas identidades que habitam o meu ser: cigano Calon, brasileiro, profissional da comunicação e saúde, artista e ativista. Todavia, não garante melhores lugares discursivos, mas são formas de tornar a luta conhecida, sensibilizando outras instâncias, como o próprio Estado, com quem vem dialogando ativamente.

Por Aluízio de Azevedo - Assessor para Ciência e Comunicação da AEEC-MT, doutor em informação, comunicação e saúde (Fiocruz), técnico em comunicação social - jornalista do Ministério da Saúde

Texto publicado originalmente no E-Book "Olhare Sobre Educação" (páginas 40-45). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/olhares_sobre_educacao_1ed.pdf  

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Ed. Hucite: 2002.

SANTOS, B.S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos B.S e Meneses M.P. (org). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83. 

SANTOS, B.S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 4a. São Paulo: Ed. Cortez, 2002.

SILVA JÚNIOR, A. A. (2018). Produção Social de Sentidos em Processos Interculturais de Comunicação e Saúde: a apropriação das políticas públicas de saúde para ciganos no Brasil e em Portugal. (Doutorado em Informação, Comunicação e Saúde). Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde, ICICT, FIOCRUZ. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/33131. Acesso em: 31/05/2019. 

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