Letycia Bond - repórter da Agência Brasil, Publicado em 13/06/2025 - 07:02, São Paulo
O
presidente administrativo da Associação Nacional das Etnias Ciganas (Anec),
Wanderley da Rocha, lidera um trabalho para que os direitos de seu povo tenham
visibilidade no Congresso Nacional e em outras esferas de poder no Estado
Brasileiro. Membro da etnia calon, um dos três grupos do povo romani
no Brasil, ele tenta convencer mais parlamentares a se sensibilizarem por suas
bandeiras, como a produção de dados oficiais, a aprovação do Estatuto dos Povos
Ciganos e a proteção contra a violência e o ódio.
"Sabemos que, na luta dos povos ciganos, hoje, no Brasil, não estamos pedindo nada a ninguém. Nós estamos cobrando o direito de ter direitos. Como autoridade, [os políticos] eles têm que fazer o que é certo”, disse em entrevista à Agência Brasil.
Rocha fundou a Anec, com o
objetivo de reunir roma [como também são chamadas as pessoas do povo
romani] de todo o país em uma entidade. Atualmente, a associação chega a mais
de 30 grupos em 20 estados, incluindo as três etnias ─ rom, sinti e calon. O
alagoano destaca que as três etnias
não tinham, até pouco tempo atrás, tanto vínculo entre si, mas decidiram se
unir para se proteger a partir da coesão.
"Sabemos que nós temos
várias demandas, mas entendemos que a luta é só uma. Graças a Deus, tanto a
etnia calon como os sinti, de uns anos para cá, fizeram um acordo, entenderam
que o Estatuto [dos Povos Ciganos] valeria agora para a nossa geração presente
e a vindoura", comemora.
Estatuto dos Povos Ciganos
Apresentado pelo senador Paulo Paim
(PT-RS), o Projeto de Lei nº 1387/22 cria o estatuto a que Rocha se
refere. A proposta já foi aprovada na
Casa, mas estacionou na Câmara dos Deputados.
O debate sobre o estatuto no plenário
do Senado Federal foi uma oportunidade para dar visibilidade a denúncias
antigas do povo romani, como o racismo e discriminação, também
chamada de romafobia ou ciganofobia.
"Nesse dia, eles pediram a
palavra. [Disseram:] 'Paim, nós somos praticamente invisíveis. Queremos o
Estatuto", recordou o parlamentar à Agência Brasil. "O
Estatuto é um passo importantíssimo na promoção de direitos e na valorização da
cultura das comunidades ciganas no Brasil, é uma iniciativa vital para esse
setor", sintetiza.
Paim concorda com a percepção de
que o povo romani é, historicamente, alvo de
discriminação, marginalização e violação de direitos. Outro avanço que a
aprovação do texto poderia trazer, destaca o senador, diz respeito à participação
das comunidades na formulação das políticas públicas.
Participação social
Para a fundadora e presidenta da
Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK), Elisa Costa, o governo federal
tem conduzido de forma problemática o delineamento do Plano Nacional de Política para Povos
Ciganos, instituído em agosto de 2024, pois teria falhado
ao não escutar seus beneficiários extensamente.
Ela questiona, por exemplo, que,
entre as 20 entidades não governamentais que
têm assento no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, 18
representam vertentes do movimento negro, e apenas uma, os roma, que é
a Associação Nacional das Mulheres Ciganas. A outra instituição que é
membro do conselho é a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
"Nossa luta pela consulta
pública [no Plano Nacional de Política para Povos Ciganos] é porque o governo
não tem noção de quem somos", pontua. "A gente continuou sem
dados, temos hoje microdados de análise. Se você pensar, temos uma população em
situação de grande vulnerabilidade social", diz a líder da AMSK, que
estima que a Bahia tem a maior população romani do Brasil.
A diretora de Políticas para
Quilombolas e Ciganos, do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Paula Balduino
de Melo, afirma que a representação dos ciganos se dá pelo Comitê Gestor do
Plano Nacional de Política para Povos Ciganos. O comitê tomou posse no final do mês passado.
Foram eleitas, por meio de votação, figuras como Wanderley da Rocha,
entrevistado nesta reportagem; Rosecler Winter, porta-voz dos sinti; e a calin
─ termo para designar mulheres e meninas do povo calon ─ Nardi Terezinha
Casanova. Também foi eleito o líder dos rom Cláudio Domingos Iovanovitchi,
porém ele morreu em março deste ano.
Sem dados
A falta de dados oficiais básicos, como a própria
contagem populacional, é uma das críticas históricas das lideranças dos romani
ao poder público. Segundo os
ativistas, um dos argumentos já ouvidos é o de que a itinerância de alguns
grupos dificulta a apuração dos dados. Apesar disso, a realidade é que o
nomadismo não é uma característica inerente a todas as comunidades ciganas, e
boa parte delas se mantém fixa em um mesmo endereço.
"Agora,
nós não temos dados sobre qual é a maior concentração no país, de uma forma
geral. E não ter um levantamento oficial já é uma forma, inclusive, reproduzida
e reconhecida por nós até no contexto internacional, de ampliação do
anticiganismo, da romafobia", afirma Elisa Costa, que também é diretora do
escritório da International Romani Union (IRU) no Brasil.
Na falta de uma base de dados, a
AMSK desagrega dados do Cadastro Único (CadÚnico) e do programa Bolsa Família
para mensurar a população romani no país. A entidade verifica o total de
pessoas que, mediante autodeclaração, dizem pertencer a Grupos Populacionais
Tradicionais e Específicos (GPTE), com marcação “família cigana” em situação de
vulnerabilidade social.
Também no final de maio deste
ano, foi realizado em Brasília um seminário sobre o Mapeamento Inicial de
Famílias Ciganas, Rotas e Redes de Acesso a Políticas Públicas, feito pelo MIR.
A pesquisa também usou o CADÚnico, como a AMSK, somado a dados das
pesquisas municipais/estaduais do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (Munic e Estadic), da Secretaria Especial de Cultura e Artes
Integradas (Secai) e do Sistema Único de Saúde (SUS), além de coletas de dados
feitas em visitas a ranchos e acampamentos ciganos.
A diretora Paula Balduino de Melo
diz que o IBGE participou da apuração dos dados do mapeamento. “Além disso,
estamos firmando um acordo de cooperação técnica entre o MIR e o IBGE, que
prevê a produção de dados relacionados aos povos ciganos”, antecipou,
acrescentando que, caso exista um Censo específico, considera eventuais
contribuições do instituto essenciais e que a pasta tem procurado salvaguardar
as metas do PNPC, mesmo com cortes orçamentários.
Questionado sobre as críticas dos
militantes roma, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não
repondeu à reportagem. O problema da falta de pesquisas do instituto sobre esse
tema também já foi apontado pelo Ministério Público Federal (MPF),
que fez uma recomendação pedindo a inclusão do povo romani no último Censo
Demográfico.
Ministério Público Federal
A atuação do Ministério Público
na cobrança de maior visibilidade para o povo romani, como no caso do
IBGE, é um indício de omissões do Estado nesse trabalho. Essa é a avaliação do
subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia, que, em sua época de
procurador, foi um aliado na luta pelos direitos dessa população.
"Não
havendo uma agência oficial, não havendo uma Funai [Fundação Nacional dos Povos
Indígenas], uma Fundação Cultural Palmares para os ciganos, nós tivemos que
construir informação antropológica sobre os grupos ciganos, informação
sociológica também e um aprofundamento jurídico. Por isso, o MPF terminou se
tornando, no Brasil, a instituição com o maior conjunto de informações
antropológicas e jurídicas sobre os ciganos no país. De fato, foi uma mudança
muito grande", ressalta.
Mariz Maia começou a atuar nesse
âmbito em 1991, depois de ganhar visibilidade com um projeto em favor dos
indígenas potiguara, que vivem no estado em que ele atuava, a Paraíba, e também
no Ceará, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte.
"Houve uma grande repercussão
e isso fez com que o senador Antonio Mariz, que, há muitos anos, defendia os
ciganos, identificasse a possibilidade de o Ministério Público cuidar também
dos ciganos, enquanto minoria. A experiência com os indígenas vinha de muito
tempo já, mas a experiência com os ciganos não existia", comenta Mariz
Maia, que também leciona na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e foi
recentemente eleito para integrar o Subcomitê de Prevenção à Tortura e outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (SPT), da Organização das
Nações Unidas (ONU).
"O senador disse assim: tem
quem cuide de índio, tem quem cuide de negro, tem que cuide de homossexual, mas
não tem quem cuide dos ciganos”, lembra o subprocurador-geral, que, então,
perguntou o que teria de ser feito. “Ele disse: ‘vá você conhecer, que aí irá
identificar’. Fui, conheci a comunidade dos ciganos em Sousa (PB), em agosto de
1991 e, desde então, temos caminhado juntos".
No sertão paraibano, a comunidade
de Sousa, dos calon, é uma das maiores da América Latina e contou com o suporte
do Ministério Público Federal (MPF) para a regularização fundiária. Em abril de
2021, o órgão ajuizou uma ação para
que fosse declarada a usucapião coletiva de imóveis de quatro comunidades
ciganas, em Sousa, distante 432 quilômetros da capital.
De acordo com o MPF, 522 famílias
ciganas tinham fixado residência lá, há 40 anos, "por questões de
sobrevivência". Eram, ao todo, 1.845 pessoas, a maior comunidade cigana
geograficamente fixada do Nordeste brasileiro, e a área que pleiteavam tinha
171.319,08 m² e fazia parte de um território maior reivindicado.
Ter desempenhado função
semelhante em prol dos indígenas potiguaras e, seguidamente, dos ciganos
demonstrou a Mariz Maia que os dois enfrentam dificuldades diferentes apesar de
algumas semelhanças, pois cada minoria étnica tem suas particularidades.
"Enquanto indígenas e
quilombolas são vinculados à terra, e a terra recebe deles a identidade e
também dá a eles a identidade, os ciganos são grupos étnicos que constroem suas
fronteiras identitárias por outras razões. Pelo modo de se expressar, eles têm
sua língua própria, pelo modo de construir seus hábitos e se organizarem
coletivamente, de manterem, de maneira geral e muito intensa, os casamentos
dentro da comunidade", explica.
Ao comparar os contextos, o
docente paraibano qualifica como "muito mais judicializada" a atuação
do MPF no caso dos ciganos. "Nossa atuação acaba sendo de articulação, de
coordenação, de um empoderamento das lideranças locais, fazendo com que
possamos mediar contatos com prefeituras, secretarias de estado, lideranças
governamentais dos vários níveis, para que os ciganos possam localizar suas
demandas. Nós damos o respaldo para apresentar a base jurídica dessas demandas
e poderem se converter em políticas públicas", detalha Mariz Maia.
Diversidade e violência
Também da Paraíba, o procurador
da República José Godoy dá continuidade ao trabalho de acolher as queixas e
necessidades do povo romani, em especial, dos calon. Em 2017, fez uma viagem
para conhecer as comunidades de Sousa e Patos, que ficam a três horas de carro
uma da outra. Na oportunidade, foi apresentado por Mariz Maia e esteve em
Condado, que fica entre as duas cidades.
Godoy concorda que o fato de os
povos ciganos serem atendidos pelo MPF já expõe o vazio deixado pelas gestões
municipais e estaduais.
"Isso já é sintomático,
porque os órgãos locais não os atendem, a não ser que a gente chame. A
Defensoria Pública, nos casos em que eles são vítimas, e infelizmente, até
nisso tem dificuldade de fazer a defesa deles, quando são criminalizados nas
suas atuações. Então, a atuação do MPF já demonstra que não têm acesso a outros
órgãos, que deveriam fazer seu papel”.
Com uma rede de contatos que vai
além de seu estado, ele se mantém atualizado sobre o que passa em comunidades
de todo o país. "Acho que os povos ciganos, no Brasil, têm uma diversidade
muito grande. Não só de moradia, mas diria um pouco quanto a se organizar e até
as condições sociais. Aqui no Nordeste, há ciganos muito pobres. Na Bahia, nem
tanto, há povos ciganos com uma condição financeira não tão vulnerável. Em São
Paulo, tem alguns com condição financeira até interessante. Então, vai ter uma
variação", diz ele.
"A
única coisa que os une realmente é o preconceito e a violência policial contra
eles. Eles sofrem muito preconceito, mais do que qualquer outro [grupo
minorizado] com o qual eu tenha trabalhado. Nenhum chega ao nível de
preconceito que os ciganos sofrem. E violência policial. Os ciganos da Bahia
não são pobres, mas sofreram um processo de assassinato brutal pela polícia.
Aqui na Paraíba, tem histórico de violências terríveis. Em todos os espaços,
eles são muito violentados", assinala.
Na Bahia, os roma foram
vítimas recorrentes de crimes nos últimos anos. Em 2021, uma chacina deixou
oito vítimas, executadas por policiais. Em 2022, pelo menos cinco ciganos foram
assassinados no estado, e, em 2023, seis pessoas foram mortas dentro de casa,
das quais quatro eram do povo romani.
Perseguição por poderes locais
Godoy acredita que essa atmosfera
de perseguição e ódio fez, há algum tempo, com que muitos ciganos quisessem
passar despercebidos por não ciganos. Nos últimos anos, entretanto, o
procurador acredita que eles intensificaram a luta para serem atores e sujeitos
de direitos e não objetos dos preconceitos e das violências.
Para Godoy, os povos ciganos
estão legalmente ainda mais desamparados do que os indígenas e os
quilombolas.
"Os
povos ciganos ficam à margem do Direito, à margem da cidadania. Há cidades,
muitas cidades, que têm legislação contra cigano. É surreal. É
inconstitucional? É, mas a força dos poderes locais atua contra eles."
Em 2023, o procurador interveio
ao saber que a prefeitura de São João do Rio do Peixe (PB), de gestão de Luiz
Claudino de Carvalho Florêncio (PSB) e Regilanio Geraldo de Morais (PSB), havia
expulsado ciganos da cidade. Em 2024, Florêncio e Morais, mais conhecidos como
Luiz Claudino e Regis Morais, foram reeleitos no primeiro turno, com 82,79% dos
votos, e continuam no comando da cidade. A Agência
Brasil procurou a prefeitura municipal de São João do Rio do
Peixe, mas não teve retorno até o fechamento desta reportagem.
Alguns entrevistados confirmaram
à reportagem a existência de leis contra os roma em certas localidades, mas
tiveram receio de que a divulgação desses municípios aumentasse o número de
apoiadores dessas medidas.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-06/lideres-romani-e-nao-ciganos-aliados-se-mobilizam-por-direitos
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