Letycia Bond - Repórter da Agência Brasil
Publicado em 24/05/2025 - 10:21 - São Paulo
Um povo que resiste, que carrega na memória séculos de
diáspora e perseguição, mas também de cultura, tradição e luta pela
autodeterminação. Assim é o povo romani — ou povos ciganos —, composto
principalmente pelas etnias calon, rom e sinti, que integra a diversidade dos
povos tradicionais do Brasil.
Mesmo com esse legado, o povo romani segue entre os
grupos mais invisibilizados do país, apontando pouca presença no debate público
e nas políticas públicas. Como outros povos tradicionais, reivindica direitos
básicos, como moradia digna, acesso à educação e ao trabalho.
A série de reportagens Invisíveis
do Brasil, da Agência Brasil, publicada por ocasião do Dia Nacional
do Cigano (24 de maio), amplia a voz dessas lideranças e revela as
principais demandas e desafios enfrentados pelo movimento romani no país. O
dia foi instituído em 2006, por meio de decreto presidencial, em homenagem ao povo romani e
à sua padroeira, Santa Sara Kali.
Estima-se que, no Brasil, a população cigana
(também conhecida como romani) seja de 800 mil a 1 milhão de pessoas,
segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O povo romani tem uma história de diáspora,
higienização étnica, genocídio e perseguição, inclusive, pelos nazistas. Um dos
28 povos tradicionais relacionados no Decreto nº 8.750/2016, os ciganos habitam o
Brasil pelo menos desde 1574, ano em que o primeiro calon, João
Torres, chegou ao país com a esposa e os filhos, vindo de Portugal.
Em 1686, o país começou a deportar ciganos para o
Brasil. Documentos portugueses datados daquele ano registram que eles deveriam
ser degredados para o Maranhão. Antes, eram levados somente para as colônias
africanas.
O multiartista, pesquisador, ativista, jornalista e
produtor cultural Aluízio de Azevedo destaca que as pessoas de sua etnia, a
calon, sempre tiveram uma ligação com a Península Ibérica, ainda que não fossem
de lá. Ele tem a clareza de que as manifestações de repulsa que os
colonizadores do Brasil direcionavam aos calon eram reproduzidas no trato com
as outras etnias.
"Portugal e Espanha sempre rejeitaram muito os
ciganos e os proibiam de falar a sua língua, de praticar ofícios tradicionais,
como a leitura de mãos, de uma série de coisas. Por exemplo, de ficar mais de
48 horas em um mesmo lugar. Daí o nomadismo ser uma coisa um pouco forçada. E
as penas eram degredo para seu país e suas colônias", explica.
Segundo Azevedo, por três séculos, Portugal conservou
a postura de repelir esses povos. "Além dessas políticas
persecutórias e colonialistas que Portugal fez, chegando ao Brasil, o Brasil
seguia as mesmas regras, porque era uma colônia portuguesa. Era Portugal quem
mandava. E, depois, isso permaneceu no Estado brasileiro, quando ele se liberta
administrativa e politicamente de Portugal. Continua com o modus
operandi", observa.
"Durante séculos, o Estado brasileiro foi muito
mau com os ciganos, foi muito ruim. Inclusive, ocorreram episódios que ficaram
conhecidos como as correrias ciganas, que era a polícia invadir acampamento,
matar todo mundo e provocar a correria de todo mundo em fuga", emenda.
"Isso aconteceu até muito recentemente, com mais
força até a década de 1970, mas ainda acontece", completa Aluízio de
Azevedo.
No Brasil, entre os problemas ainda
enfrentados por essa parcela da população estão o racismo, o preconceito e a
falta de acesso a políticas públicas específicas, como apontam lideranças
ciganas entrevistadas pela Agência Brasil.
"Sempre o racismo, o preconceito e a
discriminação têm nos distanciado de acessarmos as oportunidades e feito uma
diferença entre nós e a sociedade em geral. Nosso sangue é vermelho, igual ao
dos outros, também sentimos fome, sede, dor, alegria, paixão. Somos seres
humanos comuns, iguais a todos", diz o presidente administrativo da
Associação Nacional das Etnias Ciganas (Anec), o calon Wanderley da Rocha.
O fundador da Associação de Preservação da Cultura
Cigana (Apreci), Claudio Iovanovitchi, rom do Paraná, argumenta que o povo
romani não está pedindo nada excepcional. "Não queremos inventar a roda, o
fogo, novos caminhos para as Índias, coisas diferentes. Não é isso. Queremos o
que já existe: o acesso à educação, à escola, à saúde, à habitação. Tudo que
queremos já existe. Respeitando as especificidades dos ciganos", pontua.
"Eu não quero gueto. Não quero gueto na escola.
Quero que meu ciganinho seja bem-vindo na escola, com professores
preparados", declara.
Em um de seus artigos científicos, intitulado A
incriminação pela Diferença, o pesquisador Felipe Berocan Veiga pontua que
"os ciganos ora são vistos como uma sobrevivência ou um arcaísmo, ora como
uma recorrente ameaça".
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), ele explica que a
aversão ao povo romani tem "raízes profundas no imaginário, na
iconografia, na literatura e nos contos populares", que acabam ativando
"medos infantis e evitações inconscientes". E que estes, por sua vez,
são capazes de aguçar os mais intolerantes a cometer atos de "violência
mais explícita" contra membros de suas comunidades.
Desde o século 16, os povos ciganos ainda
pleiteiam a contagem atualizada da população e a vigência do Estatuto dos Povos
Ciganos, a ser criado por meio de projeto de lei em tramitação no Congresso
Nacional. Atualmente, a matéria (Projeto de Lei nº 1.387/22) está parada na
Câmara dos Deputados.
Apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS), o projeto já foi aprovado na Casa e é considerado
imprescindível pelas lideranças porque obrigaria o Estado a cumprir seus
deveres para com os ciganos.
Plano Nacional
Em agosto de 2024, o governo federal
instituiu o Plano Nacional de Políticas para Povos Ciganos, que
engloba ações previstas para serem implementadas no período de 2024 a 2027 e
oficializa a criação de seu comitê gestor. Com o Decreto 12.128/24, o Brasil se
tornou o segundo país do mundo a lançar uma política nacional voltada
estritamente para o povo romani.
Ao todo, o plano foi estruturado em dez objetivos, que envolvem
combate ao anticiganismo, reconhecimento da territorialidade própria dos povos
ciganos, direito à cidade, educação, saúde, documentação civil básica,
segurança e soberania alimentar, trabalho, emprego e renda e valorização da
cultura.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-05/ciganos-cobram-inclusao-no-censo-e-acesso-politicas-publicas
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